Restos de Colecção: Os Cafés do Marrare

19 de novembro de 2023

Os Cafés do Marrare

António Marrare (? - 1839), foi um napolitano que, ainda novo, chegou a Lisboa e aqui se radicou, nos finais do séc. XVIII. Começou a sua vida profissional em Lisboa, como copeiro do Marquês de Niza - Almirante D. Domingos Xavier de Lima (1765-1802), 7º marquês de Niza -, mas acabou por se tornar empresário hoteleiro de renome na capital, tendo sido fundador de alguns dos mais famosos cafés da Lisboa do séc. XIX, e que entre Junho de 1825 e Setembro de 1828 ainda acumularia com a actividade de empresário do "Real Theatro de S. Carlos".


Gravura na revista "A Semana" de 1 de Janeiro de 1851

Marrare fundaria quatro cafés, todos com o seu nome, e que se tornaram célebres em Lisboa:

- “Marrare” do São Carlos (1801-1844) -  na esquina da Rua da Figueira (Rua da Anchieta) com a Travessa da Parreirinha (Rua Capelo).
- “Marrare” das Sete Portas - na esquina da Rua de Santa Justa com a dos Sapateiros, fundado em 1804, e onde nasceu o célebre "bife à Marrare". 
- “Marrare” do Cais do Sodré (1809-1827) - na esquina da Travessa dos Romulares, com a Praça dos Romulares (Cais do Sodré).
- “Marrare” do Pulimento (1819-1866) - na Rua das Portas de Santa Catharina (Chiado), e que foi o mais famoso de todos, pela sua frequência e por ser na época, um dos cafés mais chiques de Lisboa.

Ao vir para Lisboa, Marrare fundou, em 1801, uma loja de bebidas e de conserveiro no prédio da Rua da Figueira (actual Rua Anchieta), nº 16, frente à Travessa da Parreirinha (actual Rua Capelo). Começou logo por fornecer o botequim do "Real Theatro de S. Carlos", onde substituiu o botequineiro francez João Salazar. Antes do Marrare aquela loja tinha sido uma loja de vinhos e bilhares de Mr. Dique, sendo um ponto de reunião de noveleiros em 1808 e um centro de palestreiros posteriormente.


Loja de esquina onde funcionou o "Marrare" de S. Carlos entre 1801 e 1844 (por debaixo da "Secção de Finanças")



Três anos mais tarde, seria a vez do "Marrare" das Sete Portas, foi fundado na esquina da Rua de Santa Justa com a dos Sapateiros, em 1804, no prédio, então, pertencente a Jose Antonio Gomes Ribeiro, avô de Antonio da Cunha Sotto-Mayor. Em 1808, havia por aqueles lados a batota do Sardo, no 1º andar, por cima do café, casa que Marrare habitou em 1824. Com a morte de Antonio Marrare, em 1839, o café passou para a posse do Manoel Hespanhol. «N'esta época os actores Tasso, Epiphanio e Theodorico eram seus freguezes assiduos. A' clientella constituida por actores e politicos, sucedeu uma outra, formada de toureiros profissionaes e de amadores de arte tauromachica.» in: revista "Serões".


Loja de esquina onde funcionou o "Marrare" das Sete Portas entre 1804 e cerca de 1890


Interior do "Café Aurea Peninsular" (1855 - c.1910) contemporâneo do "Marrare" das Sete Portas


Gravura de Rocha Vieira (1883-1947)

Quando da morte do Manoel Hespanhol, o jornal "Diario de Noticias" escreveu: «Forum e tribuna, escritorio e praça de commercio, palco onde se representaram dramas sentimentais e comedias burlescas, o decano dos botequins da Baixa, sucessor das glorias do Nicola e de outros repeitaveis ascendente.»


No "Diario do Governo" de 28 de Dezembro de 1839

O "Marrare" do Caes do Sodré, foi fundado em 1809 na esquina da Travessa dos Romulares, com a Praça dos Romulares (Cais do Sodré). no primeiro edifício a ser construído por Vicente Sodré, naquela praça. A propósito ... «A denominação de cáes do Sodré, que vulgarmente abrange tambem esta praça dos Romulares, que fica no centro d'elle, foi dada depois do terramoto quando Vicente Sodré, descendente de Fradique Sodré, inglez que passou a este reino no tempo de D. Affonso V, edificou alli grandes predios que vinculou, concorrendo tambem para a cortina e obra do cáes, que é um dos mais centraes que tem Lisboa, e que dá melhor serventia aos navios ancorados no Tejo.» in: "Archivo Pittoresco" - Lisboa Velha e Lisboa Nova (1860).


1808


"Marrare" do Caes do Sodré (1809-1827) na primeira porta à esquerda (na foto) na esquina da Travessa dos Romulares, com a Praça dos Romulares (Cais do Sodré).


Localização do edifício onde funcionou o "Marrare" do Caes do Sodré entre 1809 e 1827



18 de Maio de 1824


13 de Abril de 1826


28 de Junho de 1827


18 de Julho de 1827

De referir, que em relação à denominação de "Romulares", na mesma revista e no mesmo artigo ... «Haveria n'aquelle terreiro algumas figueiras de certa especie chamada 'romulare', visto que muitas denominações de ruas e sitios de Lisboa tomaram o nome de arvores que ahi houve?»

Quanto ao "Marrare" do Pulimento, foi assim denominado porque , segundo o «elegante folhetinista» Lopes de Mendonça, tinha as paredes forradas de «uma facha de pau polido, que o Marrare inventara para deposito de todo o macassar e pomada de urso, com que os coiffeurs ungem a cabeça dos seus freguezes». Foi fundado em 1819, na Rua das Portas de Santa Catharina, nos 25 e 26 (posteriormente renumerado de 58 e 60), ocupando a loja, sobre-loja e todo o primeiro andar, que era a residência do Marrare. Contava com dois empregados. 


Gravura de Rocha Vieira (1883-1947)

Em 1848 foi este café dotado de iluminação a gás, ainda antes que o Rossio ou o "Real Theatro de S. Carlos" tivessem esse previlégio.


No edifício com as bandeiras, onde funcionou o "Marrare" do Pulimento (2 portas ao meio fechadas)


8 de Janeiro de 1820

Lembro que no início do século XIX, um café custava 30 réis, mas era adulterado com fel de vaca, tremoços, favas e casac de piôrno, e era servido aso freguezes dos botequins em chávenas de pó de pedra com um assucareiro de vidro azul sobre um tabuleiro de madeira. Porém nos cafés do Antonio Marrare, o café era puro Moka e vinha numa bandeja de prata, com cafeteira, leiteira, assucareiro, porco espinho e colheres, tudo de prata. Neste cafés mais chiques vendiam-se, igualmente, vinhos generosos em uso como vinhos do "Porto" e "Madeira" seco, "Malvasia", "Carcavellos", "Barra á Barra", "Pico" e o "Chamusca".


1849


Para descrever a pessoa e a actividade de António Marrare e dos seus cafés, nada melhor que transcrever dois ou três textos bem elucidativos e bem descritivos:

A começar pelo livro de Pinto de Carvalho (Tinop) "Lisboa d'Outros Tempos" - Os Cafés (1899)

«Este homem foi o restaurador das lojas de bebidas lisboetas. Era napolitano, e veio para Lisboa contratado como copeiro da casa dos marquezes de Niza. Pançudo, corado, inxundioso, meio adormecido, andava vagarosamente, amava com delírio os appetitosos productos da cozinha italiana, e superintendia, com seus. pequeninos olhos despertalhâo, aos negócios botequinistas. Conservava-se, habitualmente, em pé, e, quando muito, encostava-se ás paredes ou aos humbraes das portas. Se lhe pediam que se sentasse, obtemperava logo na sua linguagem mesclada : 'Grazie, grazie. Non mi sento, nó, perchè se mi sento ... dormo. Che volete? dormo.' (Lisboa Antiga. Castilho.)
Paulo Midosi dizia, pitorescamente, que o velho Marrare tinha o feitio d'um garrafão monstro.
Marrare desempenhou em Lisboa o mesmo papel que outro napolitano, o Velloui, representou em Paris. Velloni fundou, além d'outros cafés, o famigerado Tortoni. Numa lista que o cônsul geral da Sicília, Vicente Mazzioli, miava ao ministro do Reino em 1813, na qual dava os nomes dos italianos residentes em Lisboa, antes da Revolução de França e Itália, apparecem: António Marrare, siciliano, Francisco Ferrari, genovez, que se naturalisou portuguez para não pagar meio por cento que pertencia á egreja do Loreto; Luiz Ferrari, capeliista e Hilário Ferrari, com loja de bebidas, ambos genovezes ; José Midosi e filhos, romanos ; Bento Cosmelli e José Cosmelii e filhos, genovezes; Marcos Filippe Campodonico, genovez; Radich, negociante siciliano; Raphael Gavazzo, negociante siciiiano, Jeronymo Pedro Gliira, negociante veneziano; Pedro Scola, guarda-livros, milanez; Lourenço Testa, genovez; José Del Negro, com loja de crystaes, toscano ; Alberto Gnecco e Francisco Gnecco, com lojas de bebidas, genovezes; e Angelo Filippe Bessone.
Cremos que todos, ou quasi todos, teem ainda representantes em Lisboa.


Gravura de Rocha Vieira (1883-1947)

Domingos Caetano Marrare, filho do botequineiro, teve uma aventura amorosa em 1821 com uma conhecida senhora  franceza, C. T. B., o que lhe valeu um processo ruidoso.
Ainda houve um processo em que figurou o Marrare, pae. Foi quando o seu cozinheiro Agostinho Clemente assassinou o seu caixeiro José Nancelli, em 1814.

António Marrare fundou quatro botequins; o de S. Carlos á esquina da Travessa da Parreirinha (rua Capelo) com a rua da Figueira (hoje rua Anchieta), o chamado Marrare das Sete Portas no Arco do Bandeira (fechou em 1844), o Marrare de Polimento no Chiado, e o do Caes do Sodré n.° 9, á esquina da Travessa dos Romulares (hoje, a Taberna Ingleza). Este ultimo acabou em 30 de Junho de 1827.

Asseveramos que os botequins do Marrare em S. Carlos e na travessa de Santa Justa jà existiam em 1804 (Gazeta de Lisboa), e o do Caes do Sodré em 1809 (Pap. Div.)

N'essa epocha todo o serviço dos seus botequins era de prata, as bebidas das melhores, e o café puro, immmune das tranquibernias mysteriosas de copa. O Marrare tambem teve uma loja de vinhos engarrafados no largo de S. Carlos, a qual mudou para a rua das Portas de Santa Catharina (Chiado) em 1818.
O café Marrare, da rua da Figueira, tornou se suspeito de ponto de reunião de jacobinos em 1809. E a essa suspeição não escapava no próprio Marrare, os seus dois caixeiros, e o administrador italiano.

Por falecimento do fundador d'estes botequins, o seu testamenteiro annunciou no Diário do Governo de 30 de Dezembro de 1839 que, em publico leilão no escriptorio da testamentaria, se trespassariam as lojas de bebidas e bilhares sitas na travessa de Santa Justa, 5 A, e na Travessa da Parreirinha, 2. Esta ultima foi tomada pelo Henrique António Nunes. Tornou-se muito frequentada pelos dilellanti do theatro liyrico. Là se planearem muitos triumphos e muitas derrotas aos cantores de S. Carlos.

No "Diario do Governo" de 28 de Dezembro de 1839


Gravuras de Manoel Macedo no livro  "Lisboa na Rua" de Julio Cesar Machado, de 1874

Marrare do Arco do Bandeira estava sob a vigilância da espionagem policial em 1820. Ahi concorriam muitas pessoas que ella afirmava serem partidistas dos francezes: o dr Moraes Callado. Francisco de Paula, guarda mór da Chancellaria-mór do reino, o sargento mór de milícias do Henrique de Mello, o dr. João Chrisostomo e Joaquim Gregório, revedor da Chancellaria.
Passados annos, em 1820, juntavam-se n'este caffé os radicaes vintistas.  (...)
Em 29 de janeiro de 1821 travou-se desordem n'esse café entre João Carlos Mourão Pinheiro e António Marcellino, ex-Corregedor de Santarém. Este mandou depois desafiar aquelle para se baterem á pistola no Terreiro do Paço! Abriu se devassa, em que depozeram os caixeiros do Marrare.
Quem administrava este café em 1829 era o italiano José Salomão Marquezzi. Fallecido o António Marrare, foi António Lodi, cunhado do Farrobo, quem arrematou este botequim para o Manoel Hespanhol. N'essa occasião o estabelecimento possuía em deposito, no subterrâneo, grande quantidade de bons vinhos e cerveja engarrafada.
A casa contava como clientes assíduos os actores Epiphanio, Tasso, e Theodorico, nos bons tempos da 'Prophecia' e do 'Templo de Salomão'. Jogava se o bilhar entre artistas, avultavam as apostas, tomava-se o seu café antes do theatro. A' noite, ceava-se lantamente, e o gerente da casa, o Domingos, pegava na costaneira respectiva e debitava os janotas, que, d'ordinario, nunca pagavam. (Os excêntricos do mm tempo. L. A. Palmeirim)
Manoel António Peres, appellidado o Manoel Hespanhol, morreu em 5 de junho de 1868, victima d'uma queimadura n'um braço, á qual sobrevieram erysipella e febre typhoide. Foram herdeiras a viuva e uma filha, actua! proprietária do café. 

O Marrare de polimento, no Chiado, 25 e 20 antigos, 58 e 60 modernos, onde é a chapellaria Augusto Ribeiro, foi, incontestavelmente, o mais famoso de lodos os botequins lisbonenses. Era frequentado pela corrupção dourada, pelos petimétres mais elegantes e de bom recibo, pelos noitibós bohemios, pelos dilettanti que lá iam trocar o santo e a senha para a próxima pateada em S. Carlos, pela nata dos lettrados, por to- dos os que possuíam brevet d'esprit, por todos os que se habituavam a mirar - atravez do vidro sem grau do monóculo inamovível — os anjos cahidos ... no Chiado ou as virgens que vinham de Cythera . . . e iam para o Loreto. (...)

Por cima do Marrare do Chiado esteve, em 1829, um armazém de papeis pintados, e em 1850 o alfayate Yung, fornecedor d'el-rei D. Fernando. Yung pagava quatrocentos mil réis de renda annual, e o Marrare pagava duzentos mil réis. Depois esteve o cartório do tabellião João Baptista Ferreira, o Musica, que era filho d'um cabelleireiro do primeiro barão de Quintella, e que frequentou a Universidade de Coimbra, subsidiado pelo cofre da Intendência Geral de Policia. Depois foi traductor do Emilio Doux, do theatro Normal, e, finalmente, tabellião, graças ao conde de Thomar.


6 de Julho de 1829

Este café tinha duas taboletas: uma dizendo - Vinhos superiores engarrafados, café - e outra dizendo - Licores e outros objectos. Bilhar. - Entre as duas portas estava um lampeão, e, sobre elle, o dístico - Marrare. Entrando-se, havia á frente uma sala pequena, á direita um corredor com mesas que conduzia ao bilhar, á esquerda ouro que levava á cosinha.
Chamava-se de polimento, porque, até certa altura, era forrado de madeira polida.


Para fazer uma pequena ideia da entrada do "Marrare" do Pulimento, aqui fica a entrada de um dos seus sucessores "Café Chiado", inaugurado em 1925

«A esta 'sancta sanctorum' das elegâncias chamava Silva Tullio - "este pandemonium da janotaria e da lilteratura lisbonense, este museu de typos extravagantes„ emfim o primeiro café de Lisboa".» in: "A Semana" Vol. II .

Era o príncipe dos botequins, que então abundavam desde o Chiado até á rua Larga do Loreto; era o café do bom tom. Ahi se agrupavam alguns dos mais ladinos jogadores do xadrez politico, ahi se via José Estevão conspirando contra os Cabraes, e Passos Manuel fazendo a sua propaganda da maçonaria ; ahi se modulavam, entre o café e o cognac, os trechos mais perturbantes do 'sparttito' da Maledicência, ahi confluíam os estratégicos de pacotilha para tramarem planos de campanha no theatro lyrico. A's portas casquilhava a fleur des pois alfacinha, os mais filauciosos homens de prol, cortejando as damas que passavam, rastolhando sedas crepitosas, rubricadas por Levaillant ou Lombré, as notáveis modistas. (...)


Gravura de Rocha Vieira (1883-1947)

As bebidas do Marrare do Chiado eram todas de primeira ordem. Os sorvetes tinham o encanto indefinível da neve polar, o chocolate egualava se ao que se tomava na chocolateria madrilena de Dona Mariquita, o Champagne parecia sorrir com aquelle sorriso frágil e ambíguo que volita nos lábios das parisienses 'cascadeuses', das garrafas alinhadas nas prateleiras dir-se-hia escapar a voz embriagante da tentação. . . (...)


13 de Junho de 1830


6 de Junho de 1843


15 de Março de 1845

António Marrare forneceu, durante annos, o botequim de S. Carlos, assim como o serviço para algumas das mais notáveis funcções da capital. Por exemplo: a ceia, refrescos, e decoração do salão nobre de S. Carlos para a festa que o Senado da Camara ahi effectuou em 12 de outubro de 1814.

O Marrare de polimento passou em 1840 para a posse de José Marrare, sobrinho do fundador, e, quando este falleceu, a viuva arrendou o ao Ferrari. Por cessação do arrendamento, esse café acabou em 1866, estabelecendo-se na mesma loja a sapataria de Manoel Lourenço.

O mais estimado dos creados do botequim era o gordo José, que ahi se conservou largos annos.» 

«A esta 'sancta sanctorum' das elegâncias chamava Silva Tullio - "este pandemonium da janotaria e da lilteratura lisbonense, este museu de typos extravagantes„ emfim o primeiro café de Lisboa".» in: "A Semana" Vol. II .

«... e saibam que paga de renda duzentos mil réis, para pagamento da qual lhe basta vender 10.665 chavenas de café (umas trinta por dia). Bem mostra que é genero que vem de Moka.» in: "A Semana" - Janeiro de 1851

E eis que na mesma revista ...


Janeiro de 1851

O café portuense se a que o anúncio anterior se referia era o "Botequim da Neve", localizado antiga Rua de Santo António (atual Rua 31 de Janeiro), próximo do antigo "Theatro Baquet", assim denominado por servir sorvetes (que só então se tornaram um hábito dos portuenses) era preferido pelos libertinos da época. Era um estabelecimento luxuoso, que segundo A. de Magalhães Basto: «Era a inveja dos lisboetas pelo seu gosto e luxo e um viveiro de "libertinos"; quem ali entrasse a tomar capilé, e se demorasse dez minutos saía cínico.»

Mas, em 1866 o café "Marrare" do Pulimento, encerraria em virtude do contato de arrendamento do estabelecimento, entre Mathias Ferrari e a viúva de José Marrare, - o sobrinho do fundador Antonio Marrare - ter chegado ao fim. «Os casquilhos, os janotas , por muitos annos ali tiveram o seu quartel general , até que pouco a pouco foi caindo a moda de frequentar este botequim, e agora parece-nos que acabou para sempre.»


No "Handbook for Travellers in Portugal" de John Murray de 1864

O Marrare não era o primeiro nem o ultimo botequim , era uma especialidade. Dizia na França uma senhora, que foi um dos maiores espiritos d'este seculo: "Thalberg é o primeiro pianista , Lizt é o unico." O Marrare das sete portas , conhecido por Manoel hespanhol , era o primeiro botequim : o Marrare do Chiado era o unico . Se alguem desejar saber o que foi feito dos rapazes que durante trinta annos passaram por aquelles dois corredores estreitos , esguios, mysteriosos , encontrará addidos de legação , chefes de secretaria , ministros , os que por alli tenham andado e sejam ainda d'este mundo. (...)
Lisboa era o Chiado; o Chiado era o Marrare; e o Marrare ditava a lei. Ser frequentador do Marrare era a suprema elegância para os elegantes; frequentar o Marrare era como para os romanos ir a Atenas; imprimia carácter.
Hoje quem subir a rua de Garrett, e gostar de pensar em arqueologias prehistoricas, lembre-se de que na loja nos 58 a 60, nessas duas portas ocupadas pelo sr. A. Ribeiro chapeleiro, é que foi o café por excelência da Lisboa de José Estêvão, da Lisboa de Luiz Mendes de Vasconcelos, o maior 'dandy' do seu tempo; e não passe, sem deixar um pensamento ao menos ao velho e gordo italiano Marrare, fundador dessa 'academia' ilustre.» in: "Lisboa Antiga - II Parte - Bairros Orientais" de Júlio de Castilho (1887).


3º sucessor (na ordem cronológica) em anúncio de 3 de Julho de 1881


No "Almanach Comercial de Lisboa" de 1886

Antonio Marrare pertenceu às grandes individualidades, portuguesas e estrangeiras do Chiado do século XIX, de onde se destacaram: Stella, Roccini, Lavaillant, Burnay, Fillon, Ferrari, Gauthier, Godefroy, Keil, Magiolo, Lombé, Marrare. Aillaud, Bertrand, Tedeshi, Neuparth, Sassetti, Jeronymo Martins, Amieiro, Adriano Telles, Matta, José Alexandre, Leitão, Pinto Basto, etc.

A enumerar os sucessores do estabelecimento, por ordem cronológica, onde funcioinou o "Marrare " do Pulimento:

- Sapataria "Manoel Lourenço"
- Alfaiataria "Vitorino, Ferreira & Almeida, Lda."
- Chapelaria "Augusto Ribeiro & C.ª " (1879 - ?)
- Chapelaria "Miguel Lacerda" (1905 -?)
- Sociedade Editora "Portugal-Brasil, Limitada" 
- Alfaiataria "Piccadilly" (1913-1919)
- "Café Chiado" (1925-1963)
- Agência da "Companhia de Seguros Império", já proprietária do edifício.

Aproveito para fazer uma referência ao café "Central", outro botequim instalado também na Rua das Portas de Santa Catharina, (esquina da Travessa Estevâo Galhardo) um pouco mais acima nos números 76 e 78, e  contemporâneo do "Marrare" do Pulimento, que se aguentou mais uns anos, até 1875, ano em que deu lugar à loja de luvas e brinquedos de Elie Benard, a "Maison Benard". Propriedade de Domingos Antonio, o "Central" e frequentado pelos marialvas, pelos famosos abas direitas, pelos Maniques, pelo marquez de Castello Melhor, por D. Jose Avilez, etc. e ainda pelos toureiros. «Nas noites d'espera dos touros era certo juntarem-se ás portas do café Central quinze e vinte cavaleiros, que d'ahi partiam para acompanhar os bichos destinados ao toureio na praça do Campo de Sant'Anna.»


Gravura de Manoel Macedo no livro  "Lisboa na Rua" de Julio Cesar Machado, de 1874


"Maison Benard" ex-"Central" em foto de 1917

Pinto de Carvalho ("Tinop"), escreveu acerca do "Central":

«O Central pertenceu ao Domingos Antonio, que andava sempre de sobrecasaca e chapeu alto. Ia para a cozinha fazer os 'beefs' sempre de 'casquête'. Foi ele o primeiro homem que estabeleceu o serviço de 'restaurants' nos cafés. Eté aí os botequins só forneciam ovos quentes á portuguesa.
As especialidades do Central eram : beefs, linguado frito e rim grelhado.
Fallecido o Domingos António, o café Central ficou pertencendo á viuva, que entregou o botequim a um administrador. Este illudia os freguezes, mandando, á socapa, buscar os beefs á taberna do Baldanza, e fazendo-lh'os servir em louça do Central. Os freguezes, ao principio, não deram pela marosca, mas, por fim, perceberam-n'a, e abandonaram a casa, que deu em pantana.»

Entretanto, e em 25 de Agosto de 1839, o jornal "O Correio das Damas" publicava o seguinte "[Communicado]":


25 de Agosto de 1839

Quanto à curta actividade de António Marrare, como empresário do "Real Theatro de S. Carlos" posso resumi-la no seguinte:

Depois da recusa de António Marrare em ser empresário do teatro em 1922, este foi concedido a João Baptista Hilberath e Margarida Bruni em 6 de Maio de 1822., tendo sido seu fiador João António Lopes Pastor. Mas o contracto não chegou a completar os três anos acordados, devido ao estado desastroso a que tinha chegado a administração do "Real Theatro de S. Carlos", tendo levado o governo a rescindir o contrato.

Foi então, finalmente, aceite por António Marrare a direcção do teatro, tendo-lhe sido adjudicada a empresa por três anos, por decreto de 11 de Janeiro de 1825. Mais tarde, porém, por decreto de 24 de Outubro do mesmo ano, foi o contrato reduzido a um ano, com um subsídio de 2:000$000 réis mensais. Tinha também, por decreto de 27 de Novembro de 1824, sido nomeado diretor do teatro o barão de Quintella. António Marrare, porém, só tomou o teatro no mês de Julho.


23 de Setembro de 1925


4 de Maio de 1826

«Foi brilhante a epocha theatral da empresa Marrare. O novo empresário mandou vir alguns novos artistas de Italia; foi Marrare quem trouxe a Lisboa as celebres Paulina Sicard e Constancia Pietralia, Luiza Valesi, e mais tarde Josephina Tuvo, os tenores Antonio Piacenti e Luiz Ravaglia, o barytono João Maria Cartagenova, o tenor Fabio Máximo Garrara, o baixo F. Valesi, etc. (...)
A este tempo tinha Marrare só recebido 6:000$000 réis de subsidio e havia desembolsado 18:000$000 réis, em que se comprehendia um adiantamento de 3:4i5$000 réis aos artistas. Em taes circumstancias requereu o empresário ao governo que lhe fosse permittido abrir o theatro no fim de tres mezes, e no caso de não ser attendido n'esta pretensão, então que se rescindisse o contracto e se desse licença aos comicos para se retirarem. O barão de Quintella, director do theatro. apoiou energicamente as reclamações de Antonio Marrare, e o governo detferiu n'esse sentido; e em 12 de junho de 1826 abriu-se o theatro de S. Carlos, continuando Marrare com a empresa até 1828.» in: "O Real Theatro de S. Carlos de Lisboa" de Fonseca da Fonseca Benevides - Junho de 1883


13 de Outubro de 1827

Entretanto em 1928 ... «Parece que Marrare contava continuar a ser empresário do theatro de S. Carlos, mesmo depois de findo o seu contrato; mas em 26 de setembro de 1828 foi concedida a Margarida Bruni a empresa, nas mesmas condições em que tinha sido adjudicada a Antonio Marrare. (...)
A nova empresa deveria comprar a Marrare todo o vestuário, scenas, etc.; sendo o pagamento feito por meio de letras.»

A última récita da empresa Marrare foi em em 22 de Setembro de 1928, em benefício de Josephina Tuvo, com ópera "Adriano na Syria", escripta expressamente para ela por Mercadante.

Quanto aos taberneiros ... estavam regulamentados.

1823


Gravura de Manoel Macedo no livro  "Lisboa na Rua" de Julio Cesar Machado, de 1874


"Taberna da Severa" de Alberto de Sousa (1880-1961)

Gravura de Manoel Macedo no livro  "Lisboa na Rua" de Julio Cesar Machado, de 1874

fotos in: Hemeroteca Digital de LisboaArquivo Municipal de LisboaBiblioteca Nacional Digital, Museu de Lisboa

4 comentários:

APS disse...

Louvo a excelência do seu poste, pela informação detalhada, trabalho desenvolvido e bela iconografia!
Votos de um bom Domingo!

José Leite disse...

Caro APS,
Muito agradeço a gentileza do seu comentário à minha publicação.
Bom Domingo também para si e cumprimentos

Rui Granadeiro disse...

Caro José Leite,
Como sempre nos habituou, mais um excelente artigo ao qual ouso acrescenter mais umas linhas.
Grande abraço.

Marrare de Cacilhas, casa de pasto e hotel da villa...

Á entrada da casa de pasto vulgarmente denominada do Marrare, estabelecida na rua da Oliveira em Cacilhas, se lê em gordos caracteres, lançados sobre enorme taboleta, o seguinte:

HOTEL DE VILLE.

E por baixo deste lettreiro

CASA DE PASTO!!

A traducção não pode ser mais elegante, nem mais fiel; porém, como seja novissima, julgamos fazer grande e relevante serviço ás pessoas que frequentão aquella villa, em as prevenir de que não obstante significar Hotel de ville, o que em língua Portugueza sempre significou — "Casa da Camara"; também hoje em idioma Cacilhense significa — "Casa de Pasto do Marrare".

E não será isto verdadeiro progresso? Sentimos em verdade, que o erudito Barboza [Diogo Barbosa Machado] não alcançasse o nosso tempo para mencionar na interessante Bibliotheca Lusitana [publicada entre 1741 e 1758], que nos deixou, a primorosa traducçâo acima referida, o nome do distincto traductor, o seu ninho paterno, idade e nascimento (cf. Progresso da lingua franceza, O Correio das Damas, agosto de 1839).

José Leite disse...

Caro Rui Granadeiro,

Muito grato pelo seu comentário e pela interessante informação adicional.

Entretanto consegui, através da Biblioteca Nacional Digital, aceder ao exemplar do jornal "O Correio das Damas" em questão e vou publicar a imagem do artigo que teve a gentileza de me indicar.

Um abraço com os meus agradecimentos