Restos de Colecção

13 de abril de 2025

Ernesto Haupt e Manuel da Silva - Fabricantes de Flautas

Acerca da vida e obra do fabricante de flautas Ernesto Frederico Haupt (c.1720-c.1813) e seus descendentes, optei por transcrever um artigo muito bem escrito e esclarecedor, publicado em Abril de 1895, pela revista "Arte Portugueza - Revista de Archeologia e Arte Moderna sob a Protecção de Suas Magestades" e da autoria do musicólogo, pedagogo, flautista e compositor Ernesto Vieira (1848-1915). Quanto à biografia e actividade comercial de Manuel Antonio da Silva (?-1880), outro grande fabricante de flautas, recorri-me do "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes" do mesmo autor, e editado em 1900 pela Casa Lambertini.




Primeira e última páginas do "Prospecto" aquando do início da revista "Arte Portugueza"

«Frederico Haupt, nascido em Berlim, cerca de 1720, estabeleceu-se em Lisboa, pouco antes do terremoto de 1755, numa casa defronte da antiga igreja dos Martyres. Ahi o surprehendeu o terrível cataclysmo, do qual escapou com os seus, ficando, porém, a casa em ruinas; de entre os escombros salvou um pequeno torno, em que trabalhava, e que ainda hoje é conservado pelo seu bisneto, com a estimação de uma reliquia de familia.
Em seguida á nova edificação da cidade, Frederico Haupt foi morar para a rua de S. Paulo, n.° 5 , 2º andar, no predio encostado ao arco grande sotoposto á rua do Alecrim, no andar inferior áquelle em que, tempos depois, Mattos Lobo assassinou a familia do pianista e compositor João Evangelista Pereira da Costa.
Tendo perdido a sua carta de privilegio, naturalmente por occasião do terremoto, Frederico Haupt solicitou a recopilação d’ella, em 1757, o que lhe foi concedido em 19 de novembro do mesmo anno. 
Frederico Haupt trabalhava em obras delicadas, tanto de madeira como de marfim, feitas ao torno, e construía toda a especie de instrumentos músicos também de madeira, taes como flautas, oboés, clarinetes, fagotes e seus congeneres. As medidas e proporções das flautas eram idênticas ás dos fabricantes allemães, os quaes construíam pelos modelos aperfeiçoados do celebre flautista Quantz, mestre de Frederico o Grande; esses modelos são os mais con¬ formes com as boas condições de sonoridade e afinação d’aquelles instrumentos, sob o ponto de vista da sua fórma antiga de tubo conico.
Empregava sempre excellente madeira, fosse ébano ou buxo, escrupulosamente escolhida. E vem aqui a proposito notar-se 0 seguinte facto: os antigos catalogos de fabricantes francezes, mencionando os instrumentos de maior preço, tinham a indicação - ébano de Portugal - para significar que eram construídos com a madeira de melhor qualidade. O ébano que nos vinha do Oriente e enviavamos aos mercados da Europa era reputado como o melhor.
A marca adoptada pelo primeiro Haupt, para distinguir os instrumentos que saíam da sua officina, eram duas cabe¬ ças humanas, vistas de perfil, tendo por legenda - Haupt - Lisboa. Todos os seus descendentes conservaram a mesma marca, de sorte que hoje' não é possível distinguir qual d elles teria fabricado qualquer instrumento que se apresente com essa marca, podendo apenas conjecturar-se a epocha da sua construcção, por certas differenças na fórma. Sómente Ernesto Haupt, de quem adeante fallaremos, empregou um distinctivo particular, em circumstancias que serão mencio¬ nadas no logar proprio.
Sobre a habilidade do primeiro Haupt, conserva a tradição uma anecdota, que eu ouvi contar, ha muitos annos, ao flautista José Gazul. Diz-se que, pouco depois da sua chegada a Lisboa, foi apresentar a el-rei D. José uma pequena peça, trabalhada em marfim, obra de grande paciência e delicadeza. D. José, emquanto a mirava, perguntou:
- Para que serve isto?
- Para metter na algibeira, respondeu o artifice, ao mesmo tempo que tirava o objecto da mão ao rei e o guardava.



Por motivos obvios, esta anecdota não é crivel; mas serve ella para demonstrar que o protogonista deixou memória tradicional de ser summamente habil.

Falleceu em epocha ainda não averiguada, mas que deve ter sido cerca de 1813 , chegando a completar noventa e tres annos de edade. Quando veiu para o nosso paiz trouxe comsigo dois filhos: o primogênito separou-se da famila, e não restam noticias d’elle; o mais novo, que veiu ainda na primeira infancia, pois nascera em Berlim no anno de 1751, foi o successor do pae, e chamou-se Antonio José Haupt.
Tomou este a direcção da casa ainda em vida do seu progenitor, por quanto já no anno de 1785 figura como dono e chefe da officina, agora elevada á categoria de fabrica, segundo se vê no seguinte documento, a muitos respeitos interessante:

"O PRESIDENTE E DEPUTADOS da Junta da Administração das Fabricas do Reino, e Obras de Aguas Livres. Concedemos licença a Antonio José Haupt para que possa abrir nesta Cidade huma Fabrica de Torneiro de Madeira e Metaes em que se fação Instrumentos Músicos castoens de Ouro, e Prata, e outras obras delicadas, que se guarnecem com os mesmos Metaes, á similhança das que neste Reino se introduzião dos estranhos; e isto em virtude da Real Rezolução de sua Magestade, a favor dos Artifices dos Novos Inventos; com declaração porem, que será obrigado a ensinar dous Aprendizes nascionaes, alem dos maes que em numero competente lhe forem arbitrados por esta Junta, instruindo-os sem rezerva alguma, sem que por este respeito lhes possa pedir ou acceitar prêmio algum, nem ainda pecuniário durante o tempo da sua obrigação, que não excederá de cinco annos; fazendo-os igualmente matricular na Secretaria da mesma Junta; e aos referidos dous dentro do tempo de seis mezes, contados da data deste; tudo na forma e debaixo das obrigações do Termo que assignou na dita Secretaria deste Tribunal; visto que pela sua pericia se constitue digno d’esta graça, que lhe facultamos por este Alvará por Nós assignado, e sellado com o sello desta Junta. Lisboa hum de Junho de mil setecentos oitenta e cinco.

(Rubricas inintelligiveis...)
(Sello impresso em branco, com as armas reaes cercadas pela legenda : Junta da Administração das Fabricas do Reino e Agoas Livres.)
No verso: «P. por despacho da Junta de 30 de Mayo de 1785".

Antonio José Haupt continuou trabalhando na officina e casa de habitação da rua de S. Paulo, com a pericia mencionada no precedente documento, e de que o seu actual descendente conserva alguns specimens interessantes. Falleceu aos sessenta annos de edade, em 10 de fevereiro de 1811, deixando por successor seu filho Ernesto Frederico Haupt, nascido em 29 de outubro de 1792.
É este o mais conhecido dos Haupts, aquelle que maior fama grangeou entre os nossos músicos, o qual ainda hoje se designa por Haupt pae, para o distinguir de seus filhos, que adiante mencionaremos.
Haupt pae, ou Ernesto Frederico Haupt, era homem de grande seriedade e consideração, artista habil, intelligente e laborioso, muito dedicado ao paiz em que nasceu.
Em 1810, isto é, quando completava dezoito annos, sentou praça no batalhão de caçadores voluntários de Lisboa, exactamente na epocha em que a capital se preparava para resistir á invasão de Massena.
Não deixou, porém, de trabalhar, ajudando seu pae, e substituindo-o quando elle falleceu.
Em 1828, tendo triumphado o partido absolutista, Ernesto Haupt, que por modo nenhum acceitava as idéas d’esse partido, esquivou-se ao serviço militar, recolhendo-se em casa, e valendo-lhe, para não ser incommodado, os privilégios concedidos a seu avô.
Logo, porém, que alvoreceu o celebre dia 24 de julho de 1833, apresentou-se aos chefes das tropas constitucionaes, e foi, com o posto de tenente, nomeado commandante da força destacada para ir guardar o paço de Queluz. Seu filho mais velho, de quem adeante fallaremos, que então apenas contava quinze annos, imitou-lhe o exemplo, sentando voluntariamente praça n’esse mesmo dia, cabendo-lhe por isso a gloria de tomar parte nos combates das linhas de Lisboa.
Em 1835, Ernesto Haupt, lembrou a utilidade de se organisar no arsenal do exercito uma officina de instrumentos músicos. Acceita a idéa, foi o seu iniciador nomeado para dirigir a nova officina e construir os instrumentos de madeira que se requisitassem, ficando os instrumentos de metal a cargo de um especialista egualmente habil, chamado Raphael, com officina no largo da Graça.
Haupt estreiou-se no serviço do arsenal, fabricando uma flauta de ébano, ricamente guarnecida de prata lavrada, que tinham destinado offerecer ao príncipe Augusto de Leuchtemberg, primeiro marido de D. Maria II, o qual era, como seu pae, o príncipe Eugênio Beauharnais, e sua avó, a rainha Hortencia, muito aftéiçoado á musica.
A morte prematura do sympathico e infeliz príncipe não permittiu que se realisasse a offerta, ficando a flauta construída em poder do arsenal, que ainda a guarda no seu museu. Essa flauta figurou nas exposições industriaes de 1838 e 1888.

- A flauta que Ernesto Haupt construiu por conta do Arsenal do Exercito para ser offerecida ao príncipe Augusto de Leuchtemberg e que se guardava no museu do mesmo Arsenal, foi vendida em 1902, em leilão, juntamente com outros objectos pertencentes ao referido museu. «Felizmente acha-se hoje melhor guardada e mais estimada, em poder do meu bom amigo Alfredo Keil.» 

Exemplo de flauta construída por Ernesto Haupt

Todavia, a officina do arsenal nunca chegou a ter uma organisação definitiva, nem mesmo chegou a funccionar no edifício. O seu director trabalhava, sim, por conta do Estado construindo muitos instrumentos para fornecimento do exercito; porém, na sua própria casa. Os instrumentos feitos n’essas condições receberam uma contramarca especial, consistindo nas iniciaes A E (Arsenal do Exercito), encimadas por uma corôa.
Eram excellentes os instrumentos fabricados pelo Haupt pae. Existem ainda muitos, e alguns d’elles têem a sua his toria: foi feita por elle a velha flauta de cinco chaves em que sempre tocou Antonio Croner durante a sua longa e activissima carreira artística, flauta que lhe foi dada pelo seu bondoso mestre, Botelho; do mesmo fabricante era a flauta de José Gazul, os clarinetes de Carlos Campos, asim como os diversos instrumentos de muitos artistas e amadores, uns já fallecidos outros ainda vivos. O sr. Augusto Haupt possue também com grande estimação a flauta que expressamente para elle foi feita por seu pae, em 1845.
Ernesto Haupt tornára-se egualmente muito apreciado numa especialidade: boquilhas para clarinetes. Os tocadores deste instrumento sabem quanto é difficil obter uma boa boquilha, porquanto a construcção perfeita d’este accessorio exige um acabamento paciente e cuidadoso. A obra d’esta especialidade que vem do extrangeiro é na maior parte ordinarissima e mal acabada. Nenhum dos nossos antigos artistas tocava com boquilha que não fosse feita pelo Haupt. 
Julgo interessante saber-se os preços que este notável fabricante levava por alguns dos seus artefactos, preços que os filhos conservaram até se extinguir a officina: uma flauta de buxo com uma só chave de latão, custava seis pintos (tanto me custou aquella em que comecei a aprender); uma flauta de buxo com cinco chaves de latão, custava moeda e meia; uma flauta de ébano com cinco chaves de prata, cinco moedas; uma boquilha de ébano, dois pintos; de marfim, meia moeda; um clarinete, cinco moedas.
Ernesto Frederico Haupt perdeu a vista quando tinha sessenta annos de edade; sobreviveu ainda dezenove annos a essa catastrophe, fallecendo em 20 de julho de 1871.
Tinha quatro filhos: José Frederico Haupt, nascido em 2 de janeiro de 1818; Ernesto Frederico Haupt Junior, nascido em 9 de dezembro de 1821; Filippe Frederico Haupt; Augusto Frederico Haupt, o unico actual sobrevivente.
Os dois irmãos, José e Ernesto, tomaram conta da officina quando o pae ficou impossibilitado de a dirigir; o mais novo, reconhecendo que o trabalho não podia chegar para todos tres, seguiu outro rumo, tornando-se musico distincto, e, graças a uma intelligencia illustrada, pôde obter um emprego na camara municipal dos Olivaes, onde se acreditou como funccionario serio e bemquisto. Filippe tomou também outra occupação.
José, o primogénito, falleceu em 21 de abril de 1867, ficando desde então só Ernesto Junior á testa da officina.


A industria começou pouco depois a definhar: ensombraram-na os productos bonitos e baratos da fabricação parisiense. Os fabricantes nacionaes não se acharam com energia nem com meios para sustentar a lucta; conservaram os typos antigos, em vez de os alindar, e de os aperfeiçoar no que realmente carecesse de aperfeiçoamento; não poderam ou não quizeram baixar os preços; não procuraram, emfim, fazer frente aos seus competidores, empregando armas eguaes. Enervou-os a demasiada confiança no credito adquirido. O resultado foi o seu completo aniquilamento.
A officina da rua de S. Paulo fora transportada em 1838 para a rua nova da Palma n.° 20, onde esteve até 1840; nesse anno, mudou-se para a rua Augusta n. os 51e 52 , conservando-se ahi por bastantes annos em estado brilhante. Soou, porém, a hora da decadência. As vendas e encommendas foram diminuindo progressivamente, até quasi se extinguirem; chegando o desfalque nas receitas a ponto de não darem para custear as despezas do estabelecimento, Ernesto Haupt Junior foi, em 1869, installar-se numa casa de renda barata, na calçada do Garcia. Nem ahi mesmo pôde, porém, sustentar-se. Ao cabo de poucos annos, viu-se constrangido a largar para sempre as gloriosas ferramentas que tanto brilho haviam adquirido nas mãos de seu pae e de seus avós. A nostalgia do trabalho attribulando-lhe horrivelmente a existência, veiu a dor moral a originar padecimentos physicos, de que muito soffreu. Valeu-lhe n’esses transes angustiosos o carinho fraterno; nem por um só momento sentiu afrouxarem-se os laços de amisade com que viveram sempre ligados todos os membros d’essa honrada familia.
Ernesto Frederico Haupt Junior, depois de prolongada e atroz doença, falleceu em 8 de dezembro de 1891.
A historia d’esta familia é interessante a muitos respeitos. A sua florescência faz parte da historia geral das artes e industrias no nosso paiz, desde a epocha em que receberam o impulso energico dado pela mão vigorosa do marquez de Pombal; a sua decadência deve também constituir objecto de util lição, para ser aproveitada por todos os que se interessam no renascimento da Patria.»


in: "Memoria ácerca do Ensino das Artes Scenicas" de Luiz Augusto Palmeirim

A marca que Frederico Haupt colocava nos instrumentos por si fabricados era somente: «F. Haupt - Lisboa.» Seu filho é que depois adoptou o emblema das duas cabeças.


Acerca do outro conhecido fabricante de flautas Manuel Antonio da Silva (?-1880), estabelecido em Lisboa, em 1807 e como referi no início, recorrendo-me ao "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes" (Vol II), da autoria do musicólogo, pedagogo, flautista e compositor Ernesto Vieira (1848-1915) e publicado pela Casa Lambertini ...

«Fundou em 1807 a officina e casa de venda que durante mais de setenta annos existiu na rua do Loreto, á esquina da rua do Norte. Construía principalmente flautas, clarinettes, oboés e fagottes, incumbindo-se também da construcção de aparelhos para os trabalhos de physica e chimica, assim como de qualquer outros objectos de metal, madeira ou marfim.
Manuel António da Silva figurou brilhantemente nas primeiras exposições industriaes que se realisaram em Lisboa desde 1822, graças á iniciativa da «Sociedade Promotora da Industria Nacional». "O relatório da exposição de 1838, que foi a segunda realisada, diz a seu respeito o seguinte: 
Os instrumentos músicos feitos pelos Srs. Manuel António da Silva e filhos, morador na Rua do Loreto n.º 79, foram Clarinetas em Befá e em ut (em si bemol e em dó); um oboé de buxo; uma Flauta de Granadilha; um Flautim com embocadura de Flageolet; um Flageolet ordinário; um Corne-Inglez ou Voz humana; e uma Flauta de buxo. Estes Instrumentos são mui sonoros, bem afinados, excellentes em todo o respeito, e tem sido preferidos aos de fora pelos intendedores estrangeiros. "


Referência a Manuel Antonio da Silva na "Revista Universal Lisbonense" de 16 de Fevereiro de 1842


1845

Silva começou em 1839 a fabricar tambem a liga de metaes que produz o metal branco, vulgarmente chamado «prata da Allemanha)). Vendia este metal aos outros industriaes, como annuncia no catalogo que publicou en1 1849, onde se lê:

"Promptifica qualquer encomrnenda da nova liga intitulada Prata d'Alemanha que tem a propriedade de se conservar branca sem mariar, a qual o <lito Fabricante tem a gloria de ter sido o unico que a tem posto em uso em Portugal desde 1839; e, julgando poder ser util aos mais Artistas, a faz a 1440 réis o arratel; podando asseverar (o que se pode verificar pela comparação) que tem aperfeiçoado a composição d'este metal, a ponto, que excede em brilho e brancura ao que vem d' Alemanha, Inglaterrra e França."


1853

Pela mesma occasião fez elle imprimir pela primeira vez a sua «Tabella dos preços», o que foi novidade entre nós; ainda não vi exemplar algum d'esta primeira edição, mas tenho um da segunda, impressa em 1849, a qual faz uma referencia áquella dizendo que diminuia agora os preços. Tem este titulo: «Nova TabcUa dos preços dos Instrumentos Músicos que se fazem na Fabrica Nacional de Manoel António da Silva. Rua do Loreto n.® 79, defronte da Travessa dos Gatos. — Lisboa. 1849.» Julgo interessante notar os preços marcados n'essa tabella para alguns instrumentos que eram então novidade e hoje são os usuaes. Assim: uma flauta de ébano com cinco chaves de prata da Allemanha, «montadas á franceza». e virolas do mesmo metal, cutava 20:500 réis; um instrumento idêntico de fabricação franceza custa actualmente 7:000 réis, e ha doze annos custava 5:000 réis. Verdade seja que Silva, assim como Haupt, empregava nos seus productos o nosso bom ébano de Moçambique, madeira que os fabricantes estrangeiros ha muitos annos deixaram de empregar.
Uma flauta de ébano com cinco chaves e virolas de prata de lei custava 28:800 réis, e se as virolas eram lavradas custava mais 2:400 réis. A flauta mais cara mencionada na referida tabella custava 65:ooo réis; tinha quatorze chaves de prata.
Um clarinette de ébano com treze chaves de metal branco custava 43:200 réis; hoje custa 12:000 a 17:000 réis, fabricação franceza, ébano falso. Um fagotte de quinze chaves custava 72:000 réis.


Capa e excerto da Tabela de 1844




Capa e excerto da Tabela de 1849


Silva construiu muitas flautas com chaves e virolas de prata lavrada, principalmente para amadores; os artistas porém preferiram sempre os instrumentos do Haupt, que consideravam mais afinados. Em todo o caso, nem um nem outro poderam resistir á concorrência franceza, e Silva rendeu-se-lhe tornando-se elle mesmo, de fabricante em commerciante. Em 1865 fez imprimir um "Catalogo de instrumentos nacionaes e estrangeiros da Fabrica e Armazem de Silva, fornecedor dos arsenaes do exercito e marinha."
Mas por essa época já a maior parte dos instrumentos que vendia eram estrangeiros e só fabricava quando especialmente lh'o encommendavam. O negocio também não prosperou, porque havia concorrentes mais hábeis ou mais felizes. Cerca de 1878, Silva pae, já em edade muito avançada, abandonou completamente a casa ao filho, e pouco depois falleceu. 


Antonio Ludgero da Silva foi estabelecer morada e pequena officina n'uma sobreloja da mesma rua do Loreto; passados poucos annos deixou tambem de trabalhar, vindo a fa1lecer obscuro e ignorado, em 23 de fevereiro de 1893, tendo 73 annos de edade. Morava então na rua das Salgadeiras, no mesmo predio onde seis annos antes tinha fallecido Augusto Neuparth»

Bibliografia: 

Alguns documentos in: Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Música, por Alexandre Alberto da Silva Andrade: "A Presença da Flauta Traversa em Portugal de 1750 a 1850" - Universidade de Aveiro (2005).

fotos in: Hemeroteca Digital de LisboaBiblioteca Nacional Digital

6 de abril de 2025

Café Beira Gare

O "Cafe de La Gare", «que o povo, de sentido mais prático, passou a chamar Cafe "La Gare"» terá aberto as suas portas, pela primeira vez, em finais de 1908, no, ainda, Largo de Camões, 5 (actual Praça D. João da Câmara) em Lisboa, mesmo ao lado da "Estação do Rossio". Vinha substituir a antiga "Livraria Tavares Cardozo (Viúva)" - ex "Livraria Editora" de "Mattos Moreira & Cardoso" - que tinha encerrado no início de 1908.


Café "La Gare" em 4 de Dezembro de 1908 aquando do regresso do Rei D. Manuel II do Porto


O inquilino anterior, ainda a "Livraria Editora" de "Mattos Moreira e Cardoso", futura "Livraria Tavares Cardozo (Viúva)"


Café "La Gare" em 1913

O fundador, e primeiro proprietário do "Cafe de La Gare" foi o professor catedrático da "Escola Superior de Medicina Veterinária" Dr. João Rodrigues de Oliveira Junior, que mandou proceder às necessárias obras de adaptação e à abertura da cave para instalação da cozinha e armazém. A construção da fachada exterior e interiores foi da responsabilidade do afamado construtor civil José de Passos Mesquita (inscrito na CML com o nº 187), o mesmo que construiu a fachada e interior da "Perfumaria da Moda" em 1909, na Rua Nova do Carmo, a "Colónia da Sineta" em Caxias em 1910, a alfaiataria "Piccadilly" na Rua Garrett, em 1912, o "Teatro Politeama" em 1912, etc ... 

«No Cafe La Gare, na esquina do Largo Camões encontram-se os revolucionários. Passam pela espingardaria, sem medo de serem vistos experimentado armas, e seguem para um cantinho do quase contíguo Cafe Gelo, onde são saudados como heroes pelos estudantes da recente greve acadêmica de 1907»

Em 22 de Novembro de 1920, a revista "Ilustração Portugueza" classificava, assim, os principais cafés de Lisboa:

« "A Brasileira", do Chiado, e o "Martinho" são cenaculos de escritores, jornalistas e artistas; O "Chave de Ouro" e "A Brasileira", do Rocio, são os pontos de reunião de politicos; O "Suisso" é o dos toureiros; O "La Gare", talvez pela excelencia dos seus bancos almofadados, dos «flirteurs»; e O "Royal" dos estrangeiros. Cada um tem a sua «élite», as suas personalidades, os seus ídolos. Na "Brasileira", do Chiado, e no «Martinho» as discussões são, em geral, suaves e ponderadas - gente que procura «marcar» com frases feitas ...- e no marmore das mesas ha sempre exposições de coisas de arte, que certos mocinhos arrancam ao lapis em momentos de prenhez artistica; No "Chave d'Ouro" e na "Brasileira", do Rocio, a normalidade é tumultuosa e oferece, por vezes, aspectos de costelas duns friccionadas a poder de bengaladas por outros mais intransigentes; No "Suisso" as conversações atingem o meio-termo entre as destes; No "La Gare" são adocicadas, melifluas, em segredo ... como devem ser no Paraíso ... e assim por deante.»


24 de Dezembro de 1925, propriedade de António Maria, "O Africano"

Em 28 de Janeiro de 1928, já era, de novo, propriedade da "Sociedade Portuguesa de Cafés, Lda." que tambem era proprietária da "CHIC"

Por outro lado, Eduardo Sucena, confessava numa palestra no café "Martinho da Arcada" em 5 de Março de 1988 e publicada na revista "Olissipo":

«Quero fazer-vos uma confissão: tenho saudades daqueles anos, não muito distantes, em que se andava por Lisboa, à noite, sem receio de sermos assaltados, agredidos, espoliados; em que os cafés estavam abertos até à meia-noite, ou até mais tarde; em que sabíamos onde encontrar amigos para cavaquear; em que depois de uma folia, se podia ir cear, pacatamente, por exemplo ao La Gare (hoje Beira Gare), em frente da Estação do Rossio, que estava aberto até às 4 horas da manhã e, se fosse preciso, até ao nascer do Sol; ou, ainda, em que se podia ir beber um caldinho (mistura de café com aguardente, canela e limão) ao quiosque que havia nos Restauradores, quase em frente do elevador da Glória; ou em que se ia ao mercado da Ribeira Nova beber cacau quente, altas horas. Em que, enfim, Lisboa, à noite, era dos boémios e de outros noctívagos pacíficos, porque, hoje, é quase exclusivamente dos marginais ...»

A situação do café "La Gare" era verdadeiramente privilegiada, pois, no local mais concorrido da Baixa, ele acolhia, os passageiros que, provenientes de diversas origens, saíam da principal estação ferroviária de Lisboa. Acresce ainda que, durante muitos anos, o "La Gare" estava aberto tanto de dia como toda a noite. Toda a Lisboa boémia se recorda, certamente das magnificas ceias servidas no "La Gare", após a saída do teatro, do cinema ou do baile, e, porque não, de qualquer outra diversão ...


Julho de 1934

Lembro que a "Sociedade Portuguesa de Cafés, Lda." era, também, proprietária do café e restaurante "CHIC" que tinha aberto por volta de 1918 no edifício do primeiro "Eden-Teatro" na Praça dos Restauradores em Lisboa, inaugurado em 25 de Setembro de 1914.

1936


5 de Novembro de 1938


"Café La Gare" em 1945

Mas, a reputação do "Café La Gare",  resultou, principalmente, do esmero e da técnica particular e única com que eram confeccionados os seus produtos tradicionais : a magnífica «Canja La Gare», o delicioso «Bife La Gare» e o puríssimo lote de cafés finos «La Gare», que tiveram sempre grande fama, apesar da casa ter conhecido até 1945, diversos proprietários.

«Em 1915, o café foi trespassado à sociedade por cotas "Paiva, Lda." que o explorou apenas durante seis anos, pois, em 1921, foi tomado pela "Sociedade Portuguesa de Cafés, Lda.". Dois anos depois, fêz-se novo trespasse, desta vez a favor do Sr. António Maria, muito conhecido por «Africano», e que, outrora, sendo caldeireiro a bordo, se estabelecera em Africa, onde ganhou alguns patacos no exercicio da sua profissão, e para onde havia de voltar mais tarde, por não ter encontrado no La Gare a «árvore das patacas» ...
E, assim, o café sofreu outro trespasse, sendo novamente tomado pela "Sociedade Portuguesa de Cafés", a qual, por sua vez, o veio a trespassar, em 1938, à "Sociedade Comercial Freiriense, S. A. R. L..", actuál proprietária.
Nos três anos seguintes, o café atravessou uma situação difícil devido, sobretudo, a dificuldades financeiras e a certos desleixos, como o da clientela não ser devidamente seleccionada.
Ao terminar o ano de 1941, entrou-se, porém, em nova vida administrativa.
Tendo sido feitas várias cedências de acções, a Sociedade conheceu novos accionistas e também uma nova Direcção, que foi constituida pelos Srs. David Pinto da Gama, Manuel Simões Leitão e Dr. José Simões Leitão.
Posta a casa em ordem, dadas instruções rigorosas sôbre a admissão de clientes, a orientação da nova direcção foi "aferida" pelo lema "servir bem", tanto em qualidade como em preço. A melhor propaganda de um produto é a que é feita pelos próprios consumidores.
Sem querer modificar as antigas linhas arquitectónicas do estabelecimento, a Direcção actual tem procurado modernizar as sua instalações de modo a oferecer aos seus clientes, embora sem luxo, o máximo de comodidades.
O Café La Gare foi inicialmente, frequentado por toureiros, mas entre os seus clientes predominaram sempre os negociantes de gado.
Actualmente, embora seja um café essencialmente popular, é frequentado por pessoas e famílias de tôdas as categorias sociais».  in: "Praça de Lisboa"
(1945)


Por volta de 1953, o café "La Gare" muda a sua designação para "Café Beira Gare".



Vista nocturna em 1953




O cidadão Carlos Leitão, num comentário ao "Beira Gare" em 29 de Fevereiro de 2016 ...

«Para quem não sabe o Beira-Gare existe neste formato desde finais de 1976. Anteriormente o Beira-Gare funcionava como um restaurante tradicional da baixa lisboeta. Abria às 06:30 da manhã e fechava por volta da 01:00. Era famoso pelo bife à Beira-Gare (melhor do que o da Trindade, Portugália e afins), pela sua canja, pratos de bacalhau e o pudim flan. Às 06:30, quando abria, era "invadido" pelos notívagos de Lisboa, de cabarés e similares, que "jantavam" àquela hora antes de se deitarem. Ao almoço a clientela era variada, destacando-se os bancários. Havia. Tempo para almoçar. À tarde e ao jantar surgiam os intelectuais, os artistas e outras figuras conhecidas. No início dos anos 40 chamava-se La Gare, mudando o nome para Beira-Gare ainda nessa década. De 1941 a 1976 manteve a mesma direção. Foi trespassado em 1976 e passou a funcionar como cervejaria/tasca. Foi mais um dos restaurantes de Lisboa que, embora reaberto com outro nome, alterou a sua configuração e o tipo do seu serviço. Hoje já não se faz o bife à Beira-Gare como antigamente (o segredo do molho perdeu-se e só existe na memória dos antigos clientes). Perdeu-se na qualidade, ganhou-se na comida gordurosa.»

O café "Beira Gare", entre 1941 e 1976, manteve-se na posse da firma "Sociedade Comercial Freiriense, S. A. R. L..", altura em que foi trespassada, e actualmente é propriedade da firma "Gonçalves, Martins Lourenço & Brandão, Lda.".

fotos in: Hemeroteca Digital de LisboaArquivo Municipal de LisboaBiblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian (Estúdio Mário Novais)

1 de abril de 2025

Hotel Diplomático

O "Hotel Diplomático", foi inaugurado na Rua Castilho, em Lisboa, no dia 29 de Maio de 1969. Foi sua promotora e proprietária a empresa "Organitel - Organizações Hoteleiras, S.A.R.L.". Com um capital social de 14.400 contos, tinha como acionistas e assento no conselho de administração: Luis Augusto Ribeiro da Silva, Luis Carlos Ribeiro da Silva e Carlos José Ribeiro da Silva. 



Dentro da área delimitada a vermelho onde foi construído o "Hotel Diplomático"

O "Hotel Diplomático", cujo custo ascendeu a 40 mil contos foi classificado com 4 estrelas. Encimado por um terraço panorâmico, oferecia 90 quartos e 17 suítes, tinha salas de leitura, conferências, banquetes, além de galeria, bar e parque de estacionamento. O mobiliário foi fornecido pela "Altamira", as alcatifas pela "Fábrica de Tapetes Vitória" e colchões "Ó-Ó" da "Molaflex"


Em 1978 é constituído o "Grupo VIP Hotels", cadeia hoteleira portuguesa e que em 2000 já contaria com 16 hotéis. Seria entregue a este Grupo a exploração do "Hotel Diplomático" nos anos 90 do século XX, tendo alterado a denominação para "VIP Excutive Diplomático Hotel", tendo procedido a uma profunda remodelação e redecoração.









Em 22 de Dezembro de 2001 a "Organitel - Organizações Hoteleiras, S.A." é adquirida por Asharaf Aly, Munir Asharaf Aly e Erik Asharaf Aly Kurgy, tendo o primeiro ficado como presidente do conselho de administração e os restantes como vogais, a partir de 11 de Fevereiro de 2002.


Cartaz em 2015

Depois de encerrado em finais de 2019, o "Hotel Diplomático" viria ser comprado, em Agosto de 2021 por 14,75 milhões de euros, pela "Catlyst Capital", uma sociedade europeia de investimento e desenvolvimento imobiliário e gestora de fundos fundada em 1996, que iniciava uma estratégia de investimento de cerca de 250 milhões de euros no sector hoteleiro com a aquisiçao deste hotel, em Lisboa, através da "Catalyst Core Plus European Property Fund". 

Na altura, esta empresa emitiu uma nota à imprensa em que declarava o seguinte: «A Catalyst irá investir cerca de nove milhões de euros numa remodelação alargada do hotel, para o dotar de 95 quartos e tranformá-lo num 'boutique' hotel de quatro estrelas» e «o hotel será gerido pela Staycity, um gestor de 'aparthotéis', através da sua insígnia 'premium' Wilde Aparthotels. A empresa assinou um contrato de aluguer de 25 anos, com atualizações anuais de renda indexadas à taxa de inflação. A Catalyst espera iniciar a remodelação no próximo ano e completá-la em 2023».

Mas … segundo o "Diário Imobiliário":

«O ‘Wilde Aparthotels Lisbon’  vai abrir portas em 2025. Surge da reconversão do antigo hotel Diplomático na rua Castilho, um projecto em desenvolvimento da responsabilidade do Staycity Groupe e do Catalyst Capital (fundo do Reino Unido), uma empresa de investimento e desenvolvimento sediada em Londres. 
A marca Wilde foi lançada em 2018 com toques de design lúdicos e espirituosos inspirados no dramaturgo e poeta irlandês Oscar Wilde, tornando-a um pouco diferente. Todos os estúdios e apartamentos com um quarto têm cozinhas/kitchenette totalmente equipadas e áreas de jantar e de estar. Os hóspedes também têm um confortável e elegante salão para trabalhar, comer ou reunir-se, juntamente com um bar, café e sala de fitness. Há também uma lavandaria, limpeza semanal, recepção 24 horas e a opção de check-in/check-out remoto.»


Imagem de Julho de 2024 (via Google Maps)