Restos de Colecção

11 de outubro de 2024

Farmácia Barreto

A actual "Farmácia Barreto", localizada na Rua do Loreto, 24-30, em Lisboa, tem a sua origem na botica franceza fundada nesta mesma rua, dias antes de 23 de Abril de 1835, pelo farmacêutico Carlos Gomes Barreto, como se pode atestar pelo anuncio publicado no "Diário do Governo" dessa data. Esta botica foi conhecida e designada, por muitos anos por "Botica franceza de C.G. Barreto" ou simplesmente por "Botica de C.G. Barreto", designação pela qual passou a ser conhecida a partir de 1845.

"Farmácia Barreto" na Rua do Loreto, 24-30

23 de Abril de 1835


14 de Julho de 1835


Botica no século XVIII

Carlos Gomes Barreto foi referido no livro "Sinopse dos Principaes Actos Administrativos da Camara Municipal de Lisboa" em 1842" ao informar:
«Determinou que se entregassem a Carlos Gomes Barreto seis Candieiros da Rua do Loreto, para os accender a sua custa com gaz lucifero, de que pertendia experimentar os effeitos.». 

O que era o "Gaz Lucifero" ? A "Revista Universal Lisbonense" nº 29, de 21 de Abril de 1842, referindo-se  também a Carlos Barreto, responde:

«Acaba de descobrir-se em París um composto liquido, a que lá dão o extravagante nome de Gas hydrogeneo liquido portatil, de que algumas garrafas foram trazidas a esta Capital, aonde por seu delegado sollicita a Companhia Franceza um privilegio, que lhe-disputa o Sr. Carlos Gomes Barreto, habil pharmaceutico, ao qual se-deve a analyse da substancia e a descoberta do segredo.
Não queremos por agora descer a particularidades. Todavia julgamos poder afiançar que este liquido sobreleva muito ao azeite, entre outras, pelas seguintes vantagens :
1.° Suppre perfeitamente, e sem difficuldade o azeite de oliveira.
2.° É applicavel á illuminação de todas as especies, da casa, da rua, da loja, do theatro , da sala.
3.° A luz produzida por elle é mais intensa e clara.
4.° Não gera fumo, nem incommoda o olfacto.
5.° Pode servirem quaesquer lanternas usuaes , só com uma leve alteracão nas grisetas.
6.° Ainda quando qualquer recipiente caia, e se despedace, o liquido não deixa nodoa.
7.° E em fim (este e em nossas terras o cumulo do bello), as substancias de que se-compõe são tão communs na natureza , e especialmente em Portugal, que o custo do liquido é consideravelmente inferior ao do azeite, que substitue.
O Sr. Barreto tem, desde a noute de hontem, alumiado a sua Botica, rua direita do Loureto n.° 65, com este liquido por elle mesmo preparado, e alli poderá o público observar os resultados de um invento, que vai desde já mudar o systema de illuminação.
José Feliciano de Castilho.»


7 de Fevereiro de 1843


4 de Agosto de 1843

Mas foi «Sol de pouca dura» … já que no jornal "A Revolução de Setembro" de  4 de Fevereiro de 1843, era noticiado:
«A direccão da companhia do Gaz Lucifero previne o publico que não lhe convindo por diversos motivos continuar com a fabricação do Gaz, a venda do mesmo cessa no dia 3 do corrente.». Neste caso foi «Gaz de pouca dura» ...


3 de Abril de 1845


31 de Janeiro de 1850

Note-se que a partir de 1845, já não é referida "Botica franceza", mas sim "Botica de C. G. Barreto".

Em 1850, Carlos Gomes Barreto morre, e fica com a botica a sua viúva, que vivia na Rua da Emenda, nº 2 -1º andar, em Lisboa. Em 1854, a botica já aparecia sob a denominação oficial de "Viuva Barreto", tendo ficado na administração da botica o farmacêutico José Pereira d'Azevedo. 

1854

Nota: Naquele tempo era usual indicar a morada de residência do proprietário em primeiro lugar, e só depois a morada do estabelecimento. No caso do anúncio anterior, em último lugar vem a morada de residência do Administrador.


Largo do Loreto que daria lugar à Praça Luiz de Camões, em gravura de Julio de Castilho de 1859. Rua do Loreto (ou Rua Direita do Loreto) à direita na gravura. Em primeiro plano o antigo palácio dos Marqueses de Marialva.


O estabelecimento com o toldo na Rua do Loreto, seria a botica "Viuva Barreto" (partindo da localização actual)


O outro lado da Rua do Loreto. A botica ficava do lado direito da gravura (à direita da carruagem visível). Gravura de Julio de Castilho de 1859

A Viúva Barreto era uma pessoa abastada, o que comprova o agradecimento do Ministro do Reino, Anselmo José Braacamp (1817-1885), em 26 de Maio de 1862:  

« (…) Claudino da Silva Guimarães, e Viuva Barreto e Primo, pela generosidade com que voluntariamente se prestam a concorrer com avultadas quantias para o emprestimo que a mencionada camara municipal se propõe a contrair, a fim de ser construido na dita villa um quartel permanente para o alojamento de tropa: quer Sua Magestade que o governador civil lhes transmitta iguaes louvores, certificando-os que viu com summa satisfação este acto espontaneo do seu patriotismo, verificado com condiçõcs altamente vantajosas para o municipio. 
Paco, em 24 de maio de 1862. Anselmo Jose Braamramp.»

Creio que foi poucos anos depois, que a designação da botica passou definitivamente a ser "Pharmacia Barreto". No anúncio que publico de seguida datado de 13 de Abril de 1864, já aparece sob "Pharmacia Barreto", mas propriedade de "Viuva Barreto" .


13 de Abril de 1864


15 de Dezembro de 1864



"Associação de Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos", em 20 de Julho de 1865


22 de Março de 1878


23 de Março de 1878

Foi certamente por morte da Viuva Barreto, que em 1882 já aparecia esta pharmacia na posse do farmacêutico Caetano Jose da Silva, segundo consegui apurar até 1886, e que não demoraria a formar sociedade - talvez em 1887 - com outro farmacêutico, Luiz Maia Tedeschi (1841-1910), formariam a sociedade "Silva & Tedeschi". 


11 de Fevereiro de 1882

7 de Março de 1893

O farmacêutico Luiz Maia Tedeschi era familiar (não consegui apurar o parentesco), de outro notável farmacêutico José Tedeschi, que tinha uma botica na Rua de São Roque, 58 em Lisboa. 

Acerca de Jose Tedeschi (1814-1904), era filho de Vicente Tedeschi, natural de Napóles. Começou a trabalhar aos 14 anos de idade como praticante de botica nas farmácias de José Vicente Leitão e de Lourenço José Peres. Em Setembro de 1837, inscreveu-se na então "Escola de Farmácia de Lisboa", criada em 1836, no âmbito da reforma educativa de Passos Manuel anexa à "Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa", tendo concluído o curso a 22 de Junho de 1839. Foi presidente da "Sociedade Farmacêutica Lusitana", cargo em que fundou em 1847 o "Jornal de Farmácia e Ciências Acessórias de Lisboa". Por decreto de 4 de Janeiro de 1845, foi nomeado professor de Farmácia e director do "Dispensário Farmacêutico", cargos que ocupou até ser jubilado a 20 de Outubro de 1869. Foi também farmacêutico da Casa Real. Foi igualmente político, tendo sido fundador do "Partido Socialista Português", e vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Era farmacêutico da Casa Real.

José Tedeschi (1814-1904)

Voltando à "Pharmacia Barreto", Caetano José da Silva e Luiz Maia Tedeschi, constituiriam a firma "Silva & Tedeschi", - que só consegui comprovar a sua existência a partir de 1893 - sob a qual funcionaria a "Pharmacia Barreto" por poucos anos, pois em 12 de Agosto de 1908 esta sociedade seria dissolvida, com a saída de Caetano José da Silva. A "Pharmacia Barreto" passaria a ter Luiz Maia Tedeschi como único proprietário.

7 de Março de 1893


1900



19 de Outubro de 1908


23 de Outubro de 1908


25 de Novembro de 1909

Em 1912  a "Pharmacia Barreto" é propriedade da firma "Martins & Ribeiro", passando a mesma para a posse de João Vicente Ribeiro Junior, proprietário da "Vicente Ribeiro & C.ª" (vide anúncio seguinte), que se verificará entre Novembro de 1913 e 1921, com direção técnica da farmácia a cargo de Alberto Magalhães entre 1916 e 1920. Em 1922, ficam a frente do negócio Antonio Carrilho e Manuel Joaquim de Oliveira, com a sociedade "Oliveira & Carrilho". António Carrilho, que abandonaria a direção da farmácia em 1923, foi um dos fundadores do "Grémio Alentejano" - que mais tarde daria origem à "Casa do Alentejo", no "Palácio Alverca" na Rua Eugénio dos Santos (actual Rua das Portas de Santo Antão). É também durante estes anos que passa a existir um gabinete, no interior das farmácias, onde um ou mais médicos davam consultas. O mesmo se passando com a continuação da existência de pequenos laboratórios onde eram criados produtos farmacêuticos, que eram comercializados sob marcas próprias ou não.

«Tonico Amarello com sello Viteri, Preparado desde 1882 pela Pharmacia Barreto», em anuncio de 1913


João Vicente Ribeiro Junior, sucessor de "Vicente Ribeiro & C.ª "


21 de Maio de 1916

Nos anos de 1924 e 1925, Manuel Joaquim de Oliveira, tenente-coronel e farmacêutico, fica com a exclusividade da direção, e nessa ocasião é instalado o laboratório para a produção ou manipulação de medicamentos. Neste contexto se estabeleceu um contrato com o professor da "Escola de Farmácia de Lisboa", B. A. da Costa Simões, entre 1935 e 1938, para que ali pudesse produzir as suas especialidades, sob a designação de "Produtos LAB - Laboratórios Farmácia Barreto".  Este contrato viria a ser revogado quando o professor Costa Simões fundou os  "Laboratórios LAB", na Avenida do Brasil, 99 em Lisboa, e no qual ficou na Direcção Técnica.

Na revista "O Comercio Português" de Junho de 1928

Maio de 1935


Janeiro de 1936

Manuel Joaquim Oliveira, devido às suas actividades político-sindicais foi deportado para Angola, e no seu regresso em 1960 a "Farmácia Barreto" encontrava-se em estado de insolvência. Ainda em 1960, a farmácia passa para a posse da Dra. Alina dos Anjos Marques Bagorra, filha de um dos credores estabelecido com a "Farmácia Bagorra", na Rua dos Remédios e que fornecia produtos químicos. É a partir desta altura que a "Farmácia Barreto" deixa progressivamente de fabricar e manipular medicamentos. A Dra. Alina dos Anjos Marques ficaria como diretora-técnica da farmácia.

Em 1988, a farmácia atravessa de novo dificuldades financeiras, e a Dra. Alina dos Anjos Marques cede a sua quota na firma "Farmácia Barreto, Lda." ao outro sócio Dr. José Pedro Graça da Silva, que ficou como responsável técnico. Ficando como sócio maioritário (outra sócia era Maria Isabel de Mesquita Magalhães Felgas da Gama Lourenço), iniciou em 1991 obras de restauro e conservação do estabelecimento e área do antigo laboratório. Foi neste ano de 1991 que a "Farmácia Barreto" se inscreveu na "Associação Nacional de Farmácias". De referir que já era associada da "Codifar".


Rótulos de medicamentos 

Em 17 de Outubro de 2005, é celebrada escritura de unificação, transformação em sociedade unipessoal por quotas e alteração total do contrato da sociedade "Farmácia Barreto, Lda.", que o Dr. José Pedro Graça da Silva mantinha com Maria Isabel de Mesquita Magalhães Felgas da Gama Lourenço. A sociedade passou a funcionar sob a firma "Farmácia Barreto, Sociedade Unipessoal, Lda.", integralmente detida pelo único sócio, Dr. José Pedro Graça da Silva, com um capital social de 5.000 €.

A "Farmácia Barreto" a pouco mais de dez anos de se tornar bicentenária, mantem as suas instalações em belíssimo estado de conservação, incluindo o seu museu, que pode ser visitado com marcação prévia. A direcção técnica continua a cargo do seu proprietário, o farmacêutico Dr. José Pedro Graça da Silva.







Bibliografia:  
Informação compreendida entre 1912 e 1980, baseada em dados disponibilizados na "Dissertação de Mestrado em Museologia e Museografia" de Luís Miguel Correia de Freitas - Universidade de Lisboa (2019).

9 de outubro de 2024

Casa Amieiro

Nos fins do século XIX, três grandes alfaiates ditaram a moda masculina em Lisboa, deixando o seu nome indubitavelmente ligado à história elegante da capital, o alemão Simon Strauss, e o Johan Christian Keil (1820-1890), - pai do poeta, pintor e compositor Alfredo Keil (1850-1907) - José Antonio Xafredo e Manuel Amieiro (1861-1933). Ambos foram, sucessivamente, estabelecidos no mesmo prédio da Rua Ivens, 45, em Lisboa, criando à casa a mais brilhante das tradições. 

Seria Manuel Amieiro, que tinha sido discípulo de Johan Kiel, a reabrir esta alfaiataria, que se encontrava encerrada, e após a ter adquirido em 1894.

"Casa Amieiro, Lda." na Rua Ivens, 55 e 57 -1º, em foto de 1945


1888


Johan Christian Keil (1820-1890)


5 de Outubro de 1894


Interior de alfaiataria no início do século XX

Mais tarde, no mesmo local e dando continuidade a essa prestigiante reputação, ai trabalhou durante anos o conhecido Manuel Amieiro, distinto profissional cuja alfaiataria passou a ser um símbolo do mundo janota, pois nenhuma outra alcançou depois ultrapassá-la na perfeição impecável do corte e na arte requintada de bem vestir. Pode consultar a sua história neste blog no seguinte link: "Amieiro - Alfaiate dos Reis e Rei dos Alfaiates".

Levado pelo desejo de transferir a sua actividade para novos horizontes, no 3º trimestre de 1900, cedeu a sua casa à firma "Casa Amieiro" - Sucessores Lopes, Lourenço & Commandita que procurou reatar o alto nivel do estabelecimento. No entanto, para atingir com êxito tal objectivo, admitiu técnicos competentes a fim de continuar prestigiando a casa e a fama obtida por Amieiro. Nesse sentido contratou  profissionais experimentados e sabedores, escolhidos cuidadosamente entre os melhores da época. Foi com tal emergência que entrou ao serviço da firma, entre outros, António da Silva Moreira, contra-mestre que já havia revelado brilhantes qualidades e em cujas mãos a alfaiataria deixara de ser um oficio mecânico para se transformar numa arte individualizada.

18 de Setembro de 1900


10 de Novembro de 1900


Março de 1902


Já sob o nome de "Casa Amieiro - Sucessores A. C. Lopes & Comandita", em 1905


2 de Janeiro de 1905

Em 1 de Agosto de 1906 é criada a sociedade "Lopes & Teixeira" ...


Contratado em 1911, na firma "Casa Amieiro - Sucessores Lopes & Teixeira" aquele distinto profissional emprestou-lhe dedicada e valiosa colaboração, contribuindo assim para o bom nome da mesma. Numa época em que o bom gosto e a elegância de bem vestir exigiam requintes de arte, este estabelecimento, graças ao saber de António da Silva Moreira, conseguiu satisfazer todas as exigências do público.




1909


Oficina de alfaiate no século XIX

Entretanto em 1912 um pequeno "desaguisado" com a utilização da designação "Casa Amieiro", pelo que aqui deixo a publicação no "Diario do Govêrno" de 17 de Setembro de 1912:

Depois de em 1914 a firma mudar de designação para "Casa Amieiro - Sucessor A. Teixeira", em 1921, é alterado o pacto social, e António da Silva Moreira entra para sócio da firma, passando a firma a denominar-se simplesmente "Casa Amieiro, Lda.", assumindo a gerência, função que exerceu até ao encerramento definitivo do estabelecimento.

Figura de excepcional relevo no seu métier, considerado ainda um dos melhores profissionais do Pais, a "Casa Amieiro, Lda." foi, pela orientação e impulso de António da Silva Moreira uma das principais alfaiatarias de Lisboa, e podendo-se honrar de ver as suas amplas e luxuosas instalações frequentadas apenas pela mais fina clientela do mundo social, artístico e corpo diplomático.