Restos de Colecção: Alfaiataria "Piccadilly"

20 de outubro de 2019

Alfaiataria "Piccadilly"

A alfaiataria, chapelaria, camisaria e gravataria "Piccadilly" abriu as suas portas pela primeira vez no último trimestre de 1912, na Rua Garrett 58-62. Esta seria a primeira loja "Piccadilly" fundada por Benjamim C. Ferreira, «distinto mestre de córte diplomado pela Academia Minister's de Londres.» A construção da fachada e interiores ficou a cargo do conceituado construtor civil J. P. Mesquita.



24 de Dezembro de 1912


11 de Janeiro de 1913

Quanto à loja que esta alfaiataria veio ocupar, já tinha uma história muito rica, pelo que se pode retirar do seguinte texto publicado no jornal "A Capital" de 14 de Julho de 1916:
«A Casa Piccadilly que ocupa a loja com os nos. 58-60 tem um passado curiosissimo. Foi alli que existiu um dos quatro botequins conhecidos pela designação de Marrare que desde o primeiro lustre do seculo passado até ha pouco houve em Lisboa. Fundou-os Antonio Marrare, siciliano, que veio em 1818 para Portugal, succedendo-lhe parentes seus, que exploraram sempre essas casas.
O botequim que existiu onde se encontra hoje a Piccadilly, era conheciso pelo Marrare do Polimento, decerto por ser frequentado pelo janotismo e pela melhor gente da epoca.
Ao Marrare do Polimento sucedeu, ahi por mil oitocentos e quarenta e tantos, o confeiteiro Ferrari, que ali se conservou até 1886. Depois vieram o sapateiro Mannel Lourenço, o chapeleiro Augusto Ribeiro, e por fim Miguel de Lacerda, um individuo original, que não tinha caixeiros, e para cuja loja se entrava por dois degraus. Lá dentro, vendia-se tudo ... o que ninguem comprava.
Quando a Piccadilly tomou conta da casa, encontrou, sobrepostos, dois ou trez pavimentos. A familia de Miguel Lacerda vivia no ultimo andar do predio. Não vinha à rua. Tudo o que precisava lhe era fornecido pelo seu chefe, fazendo-o chegar lá acima n'um cesto pelo saguão.
Agora onde foi o Marrare do Polimento, vê-se um esplendido salão, todo de carvalho, com tectos ricos e ricos parquets, tendo-se no fundo um excellente Hall envidraçado. É a casa de modas e confecções para homem, cuja clientella se recruta entre a melhor roda lisboeta, conhecida pela Casa Piccadilly. (...) Da Inglaterra veem as melhores fazendas, os melhores chapeus, tudo, enfim, quanto um bom janota ou simplesmente aquelle que gosta de vestir-se com esmero, necessita para compor a sua toilette.(...)
Por cima da Piccadilly, no primeiro andar, que tem duas marquises, das primeiras que existiram em Lisboa, esteve o alfaiate Jung, fornecedor de D. Fernando. Era ahi que se reuniam no tempo do Marrare os marialvas e os litteratos da epoca, conjuntamente com os dilletanti e cantores de S. carlos, quando esse theatro funccionava. Serviam-se excellentes bebidas e neve natural, porque no tempo não havia outra.»


Café "Marrare do Polimento" e alfaiate Jung no 1º andar


Onde funcionou o "Marrare do Polimento" (portas de madeira fechadas)


1915

Em 1919 o proprietário da "Piccadlly" cede a loja a um grupo de intelectuais e capitalistas que aí viriam a montar a "Livraria Portugal-Brasil" propriedade da "Portugal-Brasil, Limitada - Sociedade Editora" constituída em 11 de Dezembro de 1918, e que por ali ficaria até 1924. Por consequência e em 1 de Setembro de 1919, Benjamim C. Ferreira inauguraria a nova "Piccadilly" do outro lado da Rua Garrett nos 69-71 e ao lado da "Livraria Bertrand". No espaço agora ocupado por esta alfaiataria, já lá tinham estado a "Retrozaria Froes" e casa de "Modas Quaresma".


1919


Alfaiataria "Piccadilly" (dentro da elipse desenhada) ao lado da "Livraria Bertrand"

Em 1920, Benjamim Ferreira deu sociedade a António Augusto de Almeida e a Vitorino Gonçalves, constituindo, assim, a firma "Vitorino, Ferreira & Almeida, Lda.", que existiu até 1923, ano em que foi dissolvida, ficando então todo o activo e passivo da casa a cargo do sócio, António Augusto de Almeida, o qual, por sua vez, em 1924, formou a firma "Piccadilly, Lda." ficando com gerência e direcção técnica a seu cargo

«A Piccadilly não conta com numerosa freguesia , mas honra-se em possuir como clientes os nomes respeitados da élite da capital.
Sob o ponto de vista meramente mercantil, o prestígio da casa não é menos apreciável, porquanto António Augusto de Almeida dispõe de sólido crédito bancário e a sua honorabilidade é tida em alto aprêço por todos quanto com êle transaccionaram.»

Em 1934, António de Almeida em sociedade com seu irmão, Albano Álvaro de Almeida, tomaram a alfaiataria "Royal House", na Rua de S. Nicolau «em condições excepcionais de crédito que soube honrar e que não o impediram de imprimir a êsse estabelecimento um progresso deveras notável.»


"Royal House" na Rua de S. Nicolau, propriedade dos irmão António e Albano de Almeida



7 de Fevereiro de 1920


1940

Depois o encerramento desta livraria o espaço viria a ser ocupado pelo "Café Chiado", (inaugurado em 1925) que manteria a traça exterior original, apesar de tapada pela armação de ferro.


A remodelação dos anos 60 do século XX, traria o mobiliário em madeira clara, a porta e montra, igualmente, em madeira clara, tendo-se mantido o antigo e tradicional painel publicitário em vidro espelhado, fundo preto, letras douradas mencionam “mercadores e alfaiates”.






A alfaiataria "Piccadilly" continuaria nas mãos dos herdeiros de Benjamim C. Ferreira até aos anos 1980-85, altura em que passou para a propriedade de Manuel Mendonça, alfaiate da casa, e depois para os seus herdeiros.


Em Abril de 2011 esta loja, encerraria definitivamente para dar lugar a uma loja de sandes da cadeia "Vitaminas". A propósito o jornal "O Público" em 24 de Maio de 2011 relatava:
A antiga alfaiataria Piccadilly, no Chiado, em Lisboa, fechou as portas há cerca de um mês, e vai ser substituída por uma loja de uma cadeia de sanduíches.
Constrangimentos financeiros levaram os proprietários a aceitar a indemnização proposta pelo senhorio, um fundo imobiliário do banco Millenium, para se irem embora
"O senhorio foi-nos pressionando para sairmos, alegando que precisava do espaço para colocar um elevador para o condomínio de habitação que está a ser instalado nos andares de cima. E também para abrir um hall de entrada para o prédio", conta uma das proprietárias da Piccadilly, Teresa Mendonça. "Infelizmente, afinal o que vai para lá é uma Companhia das Sandes". Uma publicação da Câmara de Lisboa dedicada aos estabelecimentos históricos da capital conta que a Piccadilly vestiu membros de governos de vários cantos do mundo: "Aprumou políticos, diplomatas e artistas e teve acesso a alguns segredos de Estado".
Muito do mobiliário de madeira da loja foi levado para o atelier da Rua Anchieta, tal como a grande placa preta com letras douradas com o seu nome.

"Piccadilly" já em «fase terminal»


Loja "Vitaminas" que veio substituir a "Piccadilly"


Quanto à primitiva "Piccadilly" ? Eis o que resta ...


Hoje a alfaiataria "Piccadilly" está localizada na Rua Anchieta, nº 29 - 1º direito e é propriedade do alfaiate João Manuel Ribeiro, a quem convidaram para ficar com a marca e todo o recheio da antiga alfaiataria.

João Manuel Ribeiro na sua alfaiataria na Rua Anchieta


«Comecei a aprender com um tio em Benavila, no Alentejo, aos 11 anos. Aos 14 vim para Lisboa e comecei a trabalhar na Rua do Terreirinho, mas só lá fiquei três meses. Passei para a David Alfaiates, na Rua de São Nicolau, onde fiquei cerca de 30 anos e onde aprendi praticamente tudo o que sei. Depois comprei a Loureiro e Nogueira, na Rua de Santa Justa, e de há sete anos para cá estou aqui na Piccadilly». in Vida Extra Expresso num artigo de André de Atayde

2 comentários:

João Celorico disse...

Nos anos 60 ainda lá fui, algumas vezes, pagar a renda da casa. Não sei porquê mas era a indicação do senhorio!

Cumprimentos,
João Celorico

MAlbuquerque disse...

Excelente artigo!Fotografias fantásticas, aliás como todo o blog.
Tem mais informações sobre Benjamim Constantino Ferreira? As fotos interiores de alfaiataria que publica são mesmo da Piccadily (as mais antigas)?
Parabéns!