Restos de Colecção: Parreirinha do Rato

26 de novembro de 2023

Parreirinha do Rato

Na Rua Direita do Rato, nº 11, ao Rato, em Lisboa, existiu o "Pateo do Ferreira", cuja designação teve origem no actor Ferreira da Silva (1859-1923) «um dos primeiros artistas dramaticos portuguezes», e que lá viveu. 

O olisipógrafo Norberto de Araújo (1889-1952) descreve a sua origem e localização, na sua vasta obra "Peregrinações em Lisboa", donde retirei a seguinte passagem:

« (...) Neste angulo recto que fazem a Rua da Escola Politécnica e do Rato, e todo ainda não desfigurado, existiu a Real Fábrica das Sedas, cujas oficinas, secções, anexos e armazens em parte aqui se situavam, em ligação pelo interior rústico com a Rua – que se rasga de S. Mamede -  chamada de Fábrica das Sedas.
A Real Fábrica das Sedas foi criada, com organização própria oficial, pelo Marquez de Pombal em 1757, sucedendo à Fábrica fundada, em tempos de D. João V, por Ricardo Godin, um industrial francês que primeiramente  instalara o seu estabelecimento fabril na Fonte Santa, de onde transitou para o fundo da Rua de S. Bento e finalmente para o Rato; não foi feliz no empreendimento e já em 1750 o estado deitara a mão à sua Fábrica.
A Real Fábrica conheceu periodos de prosperidade, durante a administração pombalina sendo grande  a sua influência na sumptuária portuguesa da época, fornecendo paços, palácios, conventos  e igrejas, clientes que crivaram, por vezes, a fábrica de dívidas.


Futura "Quinta do Ferreira" na área delimitada a preto, em 1857 e ainda sem barracões construídos


"Quinta do Ferreira" na área delimitada a branco


"Quinta do Ferreira" na área delimitada a vermelho, em 1911 já com os barracões construídos

Morto Pombal, a Fábrica decaiu, arrastando-se contudo até 1855, ano em que D. Maria II mandou vender tudo, edificios, oficinas, teares, existência; uma parte foi ainda explorada por um industrial particular, e mais tarde multiplicaram-se mesmo os pequenos industriais da seda, nas Amoreiras, mas sem sinal de desafogo, havendo dessas fabriquetas  ainda vestigios como veremos noutro passo.
O prédio da esquina onde estava o armazém de vinhos de Domingos António Martins & Cia Ldª – fundado, como simples botequim, célebre no sitio, por Domingos António Martins em 1855, e renovado em 1914 – integrava-se no corpo do edificio da Real Fábrica.    ...
Antes da criação da Real Fábrica, estes terrenos por aqui, entre o Rato e a Rua da Imprensa Nacional (então Travessa do Pombal) até S. Bento faziam parte da Quinta do Morgado dos Soares da Cotovia – a quinta de D. Rodrigo  da primeira metade do séc. XVIII – e de que adiante te falarei.
Fez-se então a fábrica com as suas dependências, vendidas do século XIX.
Tudo foi depois parar às mãos de um Francisco Ferrari, de quem transitou para três filhas, duas das quais, que houveram a parte de um sobrinho, filho da outra irmã, casaram uma com o Visconde Silva Carvalho, outra com Guilherme Shindler; foi desta senhora que os imóveis da antiga Real Fábrica passaram para  sua filha D. Livia Ferrari Shindler  de Castelo Branco  viúva do estadista João Franco,  propritária de todas estas edificações, correspondentes à desaparecida fábrica, quer as da frente para a Rua da Escola quer as com frente para o Rato.
Mas façamos agora uma pausa, para entrarmos decididamente na Rua da Escola Politécnica, que vale, só por si, um passo de jornada.
... numa das dependências , com entrada pelo pátio viveu o actor Ferreira da Silva, morando ainda a veneranda viúva do ilustre artista.»


Comício Republicano, no "Pateo do Ferreira" em 1 de Maio de 1907


Neste pátio instalou-se, nuns barracões de tijolo e zinco, o "Novo Theatro de Variedades", propriedade do Dr. José Maria Couceiro da Costa e inaugurado em 27 de Março de 1880, com a peça "O Crime do Benformoso" de Costa Braga e a peça sacra "Martyrio e Gloria, ou Torquato", o Santo" de Antonio Mendes Leal. Mais tarde, viria a chamar-se "Theatro do Rato", e funcionaria até 1906, quando um incêndio o destruiu por completo. Acerca da história deste teatro consultar neste blog o seguinte link: "Teatro do Rato".


Ao lado do "Theatro do Rato" existiam outros barracões, alguns deles ocupados pelo "Chalet do Rato" que terá aberto em 1882. O "Chalet do Rato" não era mais que um conjunto de pequenas dependências pertencentes a José Martins R. da Silva, assim distribuídas : Botequim, Restaurante, Mercearia, Armazém de Vinhos, Vacaria, Bilhares, etc.


2 de Dezembro de 1882


24 de Dezembro de 1882

Como muitos dos empreendimentos comerciais da época não duravam muitos anos, pelo que este também não fugiu à regra e em 22 de Dezembro de 1884, já anunciava a o seu trespasse ...


21 de Dezembro de 1884

Contudo, logo a seguir em 01 de Janeiro de 1885 eis que aparece o anúncio que publico de seguida:


Deixou-me confuso este anuncio pelo seguinte. Primeiro anuncia o trespasse e neste anúncio refere: «José M.R. da Silva, antigo proprietario, participa ao respeitavel publico em geral, e aos seus bons amigos em particular, que continua a ter no seu vasto estabelecimento ... ». Neste mesmo texto diz «antigo proprietário», para logo de seguida referir: «seu vasto estabelecimento». Será que ficou apenas como gerente? Como não apareceu mais publicidade alguma a este estabelecimento, não consegui algum esclarecimento adicional.

Entretanto, já neste café-restaurante "Chalet do Rato" se cantava o fado. Alguns fadistas lá actuaram como: Artur Fininho, Artur Pinha, Guilherme Simões, etc. Depois de encerrado este espaço foi substituído pela casa de pasto e casa de fados a  "Parreirinha do Rato" nos anos 20 do século XX, onde se cantou o fado com mais frequência e muitos fadistas consagrados por lá passaram, a começar por Alfredo Marceneiro.

«Mas foi no «11» do Largo do Rato, antiga casa de jogo e que o dono transformou em «cabaret» quando os jogos de azar foram proibidos, que o jovem Alfredo começou a ser mais conhecido no meio fadista, sendo frequentemente convidado a cantar alguns «fadinhos», cujos versos ele mesmo improvisava. Outros versos que também cantava, letras de qualidade literária e poética muito fracas, eram adquiridos nos quiosques pelo preço de um vintém.
Aqui travou conhecimento com alguns dos poetas populares e grandes fadistas de nomeada daquela época, nomeadamente, o Britinho, estucador, o Soares, do Intendente, o Júlio Proença, estofador, o João Mulato, o Chico Viana, o Jorge, caldeireiro, (...)»


1950


Entrada e tabuleta luminosa da "Parreirinha do Rato" à esquerda na foto


1951

Em entrevista a Fernando Lemos (1926 - 2019), pintor, designer e poeta, à jornalista do jornal de "Negócios", Lucília Crespo em 16 de Agosto de 2019 o mesmo recordava:

«Meu pai andou com ele, foram amigos, frequentavam a mesma carvoaria, que é o lugar de vinho onde vendem carvão e onde há um aroma muito particular, um cheiro de carvão, de gasolina, de vinho junto. E, mais a mais, ficavam lá à noite, já de porta fechada, era só o pessoal do fado. Eu era ainda miúdo, colocavam-me sentado no balcão e ficava ouvindo aquela malta toda tocando, com o cigarro ainda aceso atrás da orelha. Era um ambiente bem característico. Havia uma casa de fados no Largo do Rato, a Parreirinha, onde a gente fazia festival de fado corrido, cada um ia cantando uma quadra e depois passava ao outro, homens e mulheres.

E o Fernando também cantava?

Também. Todos nós cantávamos… E o mestre era o Alfredo Marceneiro, ele era semelhante ao grande músico de swing americano, Louis Armstrong. O Armstrong tinha o som de uísque, o Alfredo Marceneiro tinha mais o som do vinho, do barril de vinho, o som de madeira do barril»


Tabuleta da "Parreirinha do Rato" à direita na foto


1 de Março de 1953


Entrada para a "Parreirinha do Rato" à esquerda nesta foto de 1967

Passaram as décadas e, felizmente, " A Parreirinha do Rato" foi resistindo aos tempos e "intempéries", e ainda está a funcionar.

Quanto à "Parreirinha do Rato" , o jornalista Paulo Campos, em 11 de Agosto de 2018, escrevia no site "O Tempo"

«Depois de mergulhar na poesia de Pessoa, a fome bate forte, e a recomendação de uma portuguesa que conheci na praça Jardim da Estrela é seguida à risca. Desço a rua das Amoreiras até a Parreirinha do Rato, no largo do Rato, onde precisa-se atravessar um arco para encontrar uma “tasca” à moda antiga.
Tascas são ambientes familiares, de comida caseira em doses generosas e barata, com toalhas de papel nas mesas e atendimento informal, verdadeiras portinholas onde se servem refeições. O cardápio, escrito à mão, anuncia os pratos do dia, da sardinha assada à costeleta de novilho, ao preço médio de 6,50 euros.»






No site oficial de "A Parreirinha do Rato" pode-se ler (excerto composto):

«Estamos naturalmente preparados para dar as boas-vindas a todos os clientes no nosso espaço sem barreiras arquitetónicas.
Temos sempre um delicioso almoço ou um jantar saboroso à sua espera. Use o nosso Wi-Fi gratuito para estar sempre bem informado. Temos uma área especial onde pode fumar com toda a tranquilidade.»

6 comentários:

Bic Laranja disse...

Muito bom. Muito bom mesmo!
Cumpts.

José Leite disse...

Muito grato caro "Bic"
Cumprimentos

Rui Figueiredo disse...

Sr. José Leite, grato pelo seu trabalho. Por favor continue!

José Leite disse...

Muito agradecido caro Rui

Continuarei se ... «Se a tanto me ajudar o engenho e arte.» (Lusíadas)

Cumprimentos

Anónimo disse...

Se posso acrescentar algo ao seu excelente artigo, lembro-me muito bem do sr. Lemos, como era conhecido no bairro, pai do Fernando Lemos. Marceneiro com oficina na rua do Arco a S. Mamede, sempre de cigarro ao canto da boca a plainar madeira. Bom no ofício, segundo se dizia, e o filho (também muito bom fotógrafo) tal como o pai.
"Estiquei-me" um pouco... Parabéns pelo artigo.
Gonçalo.

José Leite disse...

Caro Gonçalo,
Muito grato pela sua interessante informação adicional.
Cumprimentos