Restos de Colecção: Club dos Patos

23 de outubro de 2025

Club dos Patos

O "Club dos Patos" abriu as suas portas pela primeira vez, no Largo do Picadeiro, 10 , em Lisboa, antes da I Guerra Mundial (1914-1918), provavelmente por volta de 1913, bem perto do "Teatro Nacional de S. Carlos". Outro club, o "Maxim's" abriu como  "Club dos Restauradores" antes da I Guerra Mundial , mais concretamente em 1908. Ambos abriram como casinos, diversificando gradualmente os seus serviços de modo a conquistar mais público e de certa forma a camuflar a sua actividade original, embora esta se mantivesse.

Apesar da concentração de clubs na Rua Eugénio dos Santos, actual Rua das Portas de Santo Antão, Praça dos Restauradores e Rua da Glória, locais de outros estabelecimentos comerciais, espaços de diversão, teatros, cinemas, cafés e restaurantes aí existentes, acentuando o seu carácter de zona dedicada ao lazer e à filosofia de vida para aí promovida, o caso relativamente isolado do "Club dos Patos", na zona do Chiado tem no entanto uma justificação funcional, uma vez que se situava na convergência de vários equipamentos culturais, como os teatros, ópera, restaurantes, cafés, pastelarias, e comércio elegante. Historicamente, era também nas proximidades deste club que se situavam as assembleias e clubes dedicados a práticas de sociabilidade mundana públicas ou semi-públicas - "Turf- Club", "Grémio Literário", "Club Tauromaquico" -  para as classes mais altas que se impuseram ao longo do século XIX.

A seguir transcrevo parte de um artigo publicado no "Diario de Lisbôa" de 5 de Maio de 1928, aquando do encerramento do "Club dos Patos" e respectivo leilão do seu recheio, que ilustra bem o ambiente desta casa de jogo, dança e espectáculo:

«Inicialmente, foi apenas uma «tertulia» intima e amavel, «garconniére» de rapazes de «meia idade» que acenavam ás «demi-mondaines» com as prometidas generosidades que o titulo de «Patos» deixava antever, como bom chamariz. 

Depois foi-se alargando a frequencia, sempre elegante e escolhida, e a presença agradavel de espiritos fulgurantes veiu aumentar o interesse das noites dos «Patos» - a eloquencia exaltada dum orador de génio, as «blagues» bizarras dum artista do lapis ...

Depressa se introduziu o veneno do jogo no que, inicialmente, fôra apenas Jogo da Rosa, torneio de alegria e desenfadado amõr. E os «Patos» passaram a sê-lo no pano verde, tomando o Club um novo aspecto de «cabaret», sempre intimo mas ja com caracteristicas semelhantes a do parisiense «Rat-Mortn, e destacando-se dos seus similares lisboetas, encerrados ainda em bacanais secretas e escondidas no anonimato das ultimas letras do alfabeto.


"Slot Machine"

Pelo «Largo do Picadeiro» desfilaram então as mais lindas bailarinas de S. Carlos e as mais graciosas «tiples» da zarzuela do D. Amelia, os teatros visinhos que permitiam as suas contratadas saltarem do palco para o «Patos», «vivinhas a saltar», muitas vezes com os fatos de scena.

Lá começaram os passos ainda indecisos das suas carreiras artisticas de tanta fama como Tereza Espana, Isabelita Ruiz e Rosita Rodrigo, preparando-se igualmente para a consagração publica, com o prestigio do exito no «cercle», cantadoras tão populares como as desventuradas Julia Mendes e Maria Vitoria, Filomena Lima, actual «estrela» de revista, e Maria Rapaz, a melhor «fadista» de hoje.


30 de Dezembro de 1925


8 de Dezembro de 1926


10 de Dezembro de 1926

Na «jeunesse dorée», frequentadora dos «Patos» surgiam, por vezes, tentativas de deserção pela porta do matrimonio. E era fatal a ceia de despedida, com protestos de definitiva retirada, nostalgicos adeus, rupturas tragicas, lagrimas de dor ... e de «champagne».

Celebrava-se o casamento e, passadas poucas semanas, malograva-se a tentativa de deserção, frustrados os respeitaveis propositos pela atracção que os «Patos» exerciam nos seus frequentadores, reaparecendo o filho prodigo para novas noites de alegria, então toldadas pelo espetro da infidelidade.
E, por tudo isto, eram fatidicas em todos os lares domesticos as cinco letras, odiadas pelas esposas e temidas pelas maes receosas dos seus perigos, afinal, menos graves do que elas supunham.
E a verdade é que, durante muitos anos, foi necessario o consentimento de parentes autorisados para que os rapazes entrassem no Club, e, quando tal acontecia era o acontecimento interpretado pelos familiares frequentadores como indicação do tempo, significando-lhes que uma nova géraçao se preparava para os substituir. E a renovação foi-se dando, pouco a pouco.
Por este criterio de necessaria autorização de parentes dos menores candidatos á frequencia do Club, aconteceu o caso bem conhecido dum «sobrinho» que ainda hoje passa por sê-lo dum «tio ... con tôa la barba».
«Aprés la guerre» mudaram os aspectos das coisas e os «Patos» não resistiram á mudança. Ampliou-se o criterio de selecção e jovens de todas as idades puderam passar a dizer esta frase, outróra privativa de raros apenas:
- Passei a noite nos «Patos»!
Os «maiores», irritados por vezes, marcavam ainda a sua qualidade por gestos irrequietos que chegavam a atingir ares de batalhas campais.
Mas «le monde marche» e os «Patos» nao podiam resistir ao paralelo com os grandes «dancing's» modernos, amplos como o não podia ser a «boite» do Largo do Picadeiro.
E ámanhã lá vão a leiloar, que o mesmo é que «a enterrar», os tristes despojos dum Club que marcou uma época, mais alegre e mais franca que esta em que vivemos, os sobreviventes daquela.»


5 de Maio de 1928

Quanto ao recheio a leiloar, no mesmo artigo podia-se ler:

«A simples leitura dos artigos a leiloar basta como motivo de nostalgicas recordações para os que um dia frequentaram as salas dos «Patos»: - um auto-piano e um «jazz-band», marcando duas idades musicais na diversão coreografica do «Club»; scenarios de Jorge Barradas e muitos artigos para festas de Carnaval e Santos populares, evocando festas inolvidaveis em que dos «dominós» se passava aos mangericos, das noites frias de inverno aos calores do verão; e, finalmente, a nota bizarra da «cabine acolchoada para telefone», a cabine de onde partiram tantas chamadas misteriosas, tantas justificações de maridos que se diziam em «assembleias gerais», tantas coisas, tantas ...»

Os fadistas Estanislau Cardoso, Fortunato Coimbra, Maurício Gomes, e Julio Duarte, fadista e irmão de Alfredo Duarte "Marceneiro", cantaram no "Club dos Patos". Este último, também cantou nas cervejarias "Boémia" (antiga "Jansen"), "Rosa Branca", "Chagas", "Vitória", cafés "Portugal", "Sul América", "Anjos", "Júlio das Farturas" (no "Parque Mayer"), "Solar da Alegria" (quando da gerência de Alberto Costa), "Salão Artistico de Fados", nos cabarets "Alhambra", "Olimpia Club", no "Clube Tauromáquico, e " Club Montanha".

E, agora, falando de jogo no "Club dos Patos" ... Em 11 de Outubro de 1925, no "Domingo Ilustrado" ...

«E o Marquez perdeu hontem nos «Patos» dezoito contos!» e ... 

«Parece haver qualquer relação entre a batota e a fidalguia.
Todos os clubs de Lisboa estão instalados em casas de nobre, os mais acerrimos jogadores teem nome de costela ilustre e quasi todos os empregados das casas de jogo, são fidagos ! »


30 de Junho de 1920

Outro facto interessante é a acusação de dados viciados no "Club dos Patos" veiculadas na imprensa, Aqui fica o exemplo de "O Riso d'A Vitoria", de 30 de Janeiro de 1920:

«Num club de Lisboa, cujo nome entra na família dos palmípedes aquáticos e é sinónimo de velho palerma, deu-se há dias um caso muito engraçado. Foi o dito que por um desastre não previsto no programa, quando um ilustre banqueiro da banca francesa deitava os dados, um destes, com certeza um “amarelo” entre a classe, abriu-se e uma gota de mercúrio branca e linda como a Lágrima do sr. Guerra Junqueiro, veio mostrar aos indígenas que havia grande marosca naquela indústria, e que o club tanto podia estar em Lisboa, como no Pinhal da Azambuja.
Grande alarido, os pontos buscam um pouco de indignação ao fundo das algibeiras e vá de procurar os mais dados da casa e de os partir. Pois senhores!
Quinze jogos completos estavam endrominados e postos à bica para o primeiro endinheirado que aparecesse.
Afirmaram alguns dos directores do Club que como tinham mandado fazer uma análise aos dados e esta tinha dado positiva, fora lembrança dar-lhes aquelas injecções de mercúrio por conselho do médico!
O caso porêm, mais engraçado é que o dito Club continua aberto e que até lá vao ministros!
E matou a justiça o Diogo Alves o José do Telhado e o João Brandão! Esses coitados, à vista do presente, não passavam de uns inocentes ... patos ...»

Não por esta razão, mas por outra que veremos de seguida, em 19 de Fevereiro de 1926 ... lá se foi o proprietário Mazzolini Ercole ...


Na revista "Diário Ilustrado" de 28 de Fevereiro de 1926

«O caso do dia foi a morte do italiano Ercole Massalinni, ocorrida ontem á noite, em circunstancias misteriosas.
Como se sabe, a policia, logo que teve conhecimento do caso, prendeu as 47 pessoas que se encontravam no «club» - e entre elas cinco «papillons» e a caixa do «restaurant», sobrinha do morto.
Conduzidos todos ao Governo Civil, foram encerrados nos calaboiços e nos quartos particulares.
Como, porém, poucos momentos depois, se tivesse apresentado á policia o sr. Francisco Ramalho, declarando que a morte se dera em consequencia duma scena violenta com ele, o sr. dr. Teixeira Direito, adjunto do director da Policia de Investigacao Criminal, mandou - e muito bem - que todos, a excepção de três, fossem restituidos á liberdade.
A' saida, houve scenas comoventes. As «papillons», uma a uma, fugiam, estonteadas, gritando:
- Que horror! Que horror!
Nao admira. Se era a primeira vez que viam as grades dum calabouço - do lado de dentro !... (...)

Ercole Massalinni, ha muito que vinha perdendo nos negocios. Isto pô lo de mau humor.
Depois, um socio fugiu-lhe com alguns milhares de francos. E, para cumulo do azar, havia contra ele um mandado de captura, por causa duma falsificação de «champagne».
Massalinni começou a andar irritado. E essa irritação cresceu depois do Carnaval, manfestando-se constantemente.
Ontem á noite, Ercole, provavelmente no intuito de armar qualquer conflito, ordenou que o sexteto, que sempre tocara no segundo andar do club, viesse fazê lo para o bar,
instalado no primeiro andar.
O regente protestou e foi contar o caso a Francisco Ramalho, dizendo-lhe que não tocaria no bar.
Francisco Ramalho subiu ao andar superior, e, num corredor, a poucos passos da sala, censurou o italiano:
- Os musicos teem que tocar aqui. Nem que eu tenha que pagar. Você o que è é um malandro !...
Ercole Massalini puxou por um pistola. Ramalho que é forte segurou-lhe os braços. Houve luta. Partiu um tiro e Ramalho, ao vêr o italiano ferido, fugiu desvairado.
Esta é a explicacão que Francisco Ramalho da e que as testemunhas confirmam.». in: "Diario de Lisbôa" de 20 de Fevereiro de 1926.

Com clientela mais ou menos sofisticada, jogava-se em quase todos os clubes de Lisboa. Os menos bem frequentados, de acordo com as fontes consultadas, seriam o "Ritz Club" e o "Club dos Patos", e os mais elitistas, como o "Maxim's" ou o "Majestic Club" futuro "Monumental Club" a partir de 1923, geravam receitas mais avultadas.

Anúncios em 29 de Fevereiro de 1920, no "ABC a Rir"

O ambiente nas salas de jogo dos clubes noturnos contrastava com o da zona do divertimento. Salas de luz pálida onde o silêncio reinava por contraste à área de dança onde o barulho ensurdecedor da jazz-band animava as frenéticas coreografias do charleston e foxtrot, alimentadas pelas luzes elétricas coloridas. Por outro lado, os jogadores eram também dos primeiros clientes a chegar e os últimos a abandonar os clubes noturnos.



Mas em 13 de Janeiro de 1921 ...

E cinco anos mais tarde, com a queda de I República de 1910 e a implantação do Governo da Ditadura Militar a partir de 28 de Maio de 1926, mais conservador e de princípios morais mais vincados, é promulgado o Decreto n.º 14643, de 3 de Dezembro de 1927., que  regulamenta os «Jogos de fortuna ou azar, forma, lugares e época da sua exploração», donde retirei o Artigo 2º:

«Art. 2.° Nas zonas estabelecidas no artigo 3.° e nos termos do presente decreto são permitidos casinos de jogo, nos quais poderão funcionar apenas os jogos de fortuna ou azar seguintes:

Roleta com trinta e seis números e um zero.
Banca francesa com dados transparentes.
Trinta e quarenta.
Bacara bancado.
Petits ehevaur e suas variedades.
Bacara chemin de fer.
Écarté. »


15 de Janeiro de 1920

Em consequência, e até 1928 (inclusivé) encerrariam o "Club dos Patos", "Monumental Club", "Bristol Club", "Avenida Palace Club", e "Club Montanha". Em 1929 encerra o "Ritz Club", mantendo-se em funcionamento o "Maxim’s" até 1939 - o leilão do seu recheio realizou-se em 21 de Junho de 1940. O "Olímpia Club", na Rua dos Condes,  possivelmente pela reputação que havia conquistado e de acordo com as licenças de jogo emitidas em Lisboa, em 1929 ainda mantinha atividade de casino. Como club nocturno funcionou até ao Carnaval de 1959.

Actualmente no edifício onde funcionou o "Club dos Patos" estão instalados o "Centro Nacional de Cultura", fundado em 13 de Maio de 1945, e o restaurante "Café no Chiado".


E para terminar num ambiente mais musical ...


Esta diva Adelina Patti já foi referida no artigo "João da Matta - Cozinheiro e Hoteleiro", neste blog.

fotos in: Hemeroteca Digital de Lisboa,Arquivo Municipal de Lisboa, Casa Comum, Biblioteca Nacional Digital

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