Restos de Colecção: Cine Pátria e Cinema Popular

6 de outubro de 2025

Cine Pátria e Cinema Popular

O "Cine Pátria" foi fundado na, então, Rua Direita do Grilo, 46 no Bairro do Beato, em Lisboa, no ano de 1917 por José Perdigão, funcionário da "Companhia Cinematographica de Portugal" (fundada em 17 de Dezembro de 1912), ainda como "Animatographo do Beato", e anunciava-se como «o mais distinto cinema, proporcionando rendez-vous elegantes».

Instalou-se na muralha do "Palácio dos Duques de Lafões", - cuja construção foi iniciada em 1777 por iniciativa de D. João Carlos de Bragança, 2º Duque de Lafões, co-fundador da "Academia das Ciências" - numa época em que este bairro era densamente povoado, para o mesmo espaço no qual se chegou a projectar  um edifício que devia integrar cinema e habitação. Norberto de Araújo, em 1937, escrevia: «(...) a seguir vê-se a muralha sobre a qual assentavam os jardins, (do Palácio) e foi essa muralha escavada há cerca de trinta anos, e nela se construíram estabelecimentos que antecederam o Animatografo popular.»

Já em 1908 tinha existido na Rua Direita do Grilo (actual Rua do Grilo), no número 98, um animatógrafo de seu nome "Salon Biographe" pertencente a Carlos Joaquim Maria dos Santos. Esta sala teve uma existência muito curta. E para comprovar ...


Ambos de 1908

Acerca dos animatógrafos/cinemas de bairro nas primeiras décadas do século XX, vou de seguida expor algumas considerações.

A difusão do animatógrafo levou ao aparecimento dos cinemas de bairro, correspondentes, de certa maneira, aos antigos teatrinhos particulares e às salas dos clubes recreativos locais. Os primeiros surgiram logo em 1907, em Alfama, na Estrela, em Alcântara, na Mouraria, em Santos, no Rato, no Intendente, na Madragoa, na Ajuda, etc. O movimento prosseguiu ao longo dos anos, podendo considerar-se de bairro 56% dos cinemas existentes na capital em 1930. Tal como o seu congénere teatral, o cinema de bairro era geralmente mais pequeno do que o grande cinema do centro da cidade e limitava-se a reprises. Visava sobretudo um público pequeno burguês e operário.

Quanto a animatógrafos de bairro em 1932, o panorama era o seguinte: na Mouraria - "Salão Lisboa"; nas Avenidas Novas - "Trianon Palace"; no Alto do Pina - "Max Cine"; na Penha de França - "Cine Oriente"; na Graça - "Royal Cine", "Salão Recreio" e "Gil Vicente"; no Beato e em Marvila - "Cine Pátria" e "Palais Cinema"; em Campolide - "Cine Tortoise"; em Campo de Ourique - "Paris" e "Europa Cinema"; na Ajuda - "Portugal"; em Alcântara - "Eden Cinema" e "Promotora"; em Belém - "Belém Cinema"; no Bairro da Bélgica (ao Rego) - "Cine Bélgica"; na Praça do Chile - "Pathé Cinema"; no Rato - "Teatro Joaquim de Almeida". À excepção das salas "Salão Recreio", "Palais Cinema" e "Gil Vicente" as histórias de todos estas salas de espectáculos podem ser consultadas neste blog.


"Cine Bélgica(1928-1977)


"Cine Oriente"  (1931-1977)


Na revista "Cinegrafia de 2 de Maio de 1929, com o "Palais Cinema" do Poço do Bispo

«A indole do nosso pôvo é profundamente bôa, digam o que quiserem aqueles que constantemente apregoam os maus instinctos das nossas classes mais pobres. Quem não assistiu ainda a uma sessão de algum dos animatografos da periferia de Lisboa, frequentados na sua grande maioria por trabalhadores humildes? São, apezar de tudo, ainda as fitas de aventuras aquelas que mais deliciam a assistencia. As exclamações, ora de odio ora de verdadeira alegria, soltadas pelos frequentadores mais jovens desses cinemas, segundo o tirano da fita vence ou é vencido, revelam-nos o bom fundo do nosso povo.» in: revista "Cinegrafia" de 2 de Maio de 1929.


Este animatógrafo com acompanhamento ao violino e piano



Exemplos de interiores de salas de animatógrafos ou cinemas de bairro

«Os cinemas dos bairros afastados - esses - têm, realmente, uma feição muito característica ... Uma objectiva, que tivesse o mérito de ser ... subjectiva, lograria focar aspectos e sentimentos cheios de interêsse e de pitoresco. E' o Cine Tenor Romão, onde se distribuem cachimbos de louça pelos frequentadores; o Salão Ideal, o cine isto, o cine aquilo e talvez mesmo, como se diz na anecdota conhecida, o sine quanon ... Os porteiros envergam a sua casaca carnavalesca com a mesma sem-cerimónia com que os gatos-pingados se instalam nas suas lúgubres andainas ... Garotos de meio palmo compram a meias um lugar de quinze tostões e acomodam-se os dois na mesma cadeira De dia andam enervados, saltitantes, inquietos, a amealhar os magros tostões necessários para garantir a entrada ...

- Meu senhor, da-me um tostaozinho para ir ao cinema ?...
- Vai-te, diabo! Se pedisses para pão ...

... como aconteceu ao meu ilustre amigo dr. Jorge de Faria, distintissimo crítico de Teatro e atroz inimigo de tudo que cheire a cinema.
Outros gaiatos, cinéfilos e cineastas até á medula que lhes corre na coluna vertebral, conseguem a entrada por meio dos mais curiosos estratagemas. Uns vão para dentro da sala, a tilintar o seu grito infantil deCopo com água! Outros, sob o pretexto de levar qualquer coisa «áquêle senhor que lá está adiante», entram para só saír no fim da sessão. E por ai fóra ... Não tem limites a inventiva incandescente dêsses cérebros pequeninos ...
E tudo corre ao som do piano mal afinado, batido quási desordenadamente, acompanhado ás vezes por um violino que guincha, e sempre pelo assobio da rapaziada alegre que sabe de cór a valsa da Ramona ...
Mas quê? São assim os cinemas que fugiram da Baixa? Foram! Foram! Vejam agora o Royal, aquêle salão que há ali na vertente da Graça e que se abalançou a ser o primeiro a fazer ouvir as suas fitas.» excerto de artigo na revista "Cinegrafia" de 19 de Abril de 1930 e da autoria de José Ribeiro dos Santos.

Voltando ao "Cine Pátria", em 1928, este é adquirido por José Manuel Ginja que o venderia em 1931 depois à firma "Mendonça & Soares", e da qual era sócio maioritário Baldomero Gonçalves Charneca. Nos anos seguintes foram promovidas significativas melhorias na sala e na fachada, tendo nessa altura o cinema capacidade para acomodar quatrocentos e quarenta e sete espectadores.



"Cine Pátria" nesta listagem de 1938 


"Cine Pátria" e "Cinema Popular" nesta outra listagem de 1941 

Em finais da década de 40 e 50 do século XX a lotação deste «cinema de bairro» era de 490 lugares, que esgotava principalmente nas tardes de Domingo. Os arrumadores colocavam uns bancos corridos na frente da primeira fila, para satisfazer mais uns quantos clientes. Em outras ocasiões o cinema encontrava-se esgotado, só restavam aquelas cadeiras que apanhavam as colunas da sala.  A sala era composta de uma plateia, ligeiramente inclinada, acontece que motivado à pouca altura e à falta de adequada  ventilação, durante os meses quentes de verão, com a casa lotada, os espectadores sofriam com o calor ali produzido. Devido ao facto da sala não ter altura adequada, a cabina de projecção situava-se abaixo do nível normal, pelo que, com a sessão já iniciada, os retardatários eram obrigados a curvar-se para evitar que a sua sombra fosse projectada no ecrã. 



Programa do "Cine Pátria" a partir de 11 de Dezembro de 1943 (gentilmente cedido por Carlos Caria)

Nota: o filme "O Costa do Castelo", publicitado no programa anterior, era muito recente, pois tinha sido estreado no "São Luiz" em 15 de Março do mesmo ano de 1943.

Bilhete para 1 de Junho de 1954

Em 1948 Baldomero Charneca funda a empresa "Edecine - Empresa de Cinemas, Lda.", tendo como sócios Baldomero Gonçalves Charneca e sua mulher Isaura da Luz Mendonça Charneca, e cuja actividade cinematográfica se prolongou até 1985 tendo atingido as 18 salas, em território nacional (Moscavide, Forte da Casa, Alenquer, Mafra, Azambuja, etc ...). Assume, em 1950, a gerência desta sala de cinema, função que viria a exercer nas três décadas seguintes. 

Foi, igualmente, proprietário do "Cinema Popular", na Rua Direita de Marvila, no bairro de Marvila e que abriu as suas portas em 1935 no lugar do extinto "Palais Cinema" de 1929 e propriedade de José Rodrigues Thomaz. Este já com plateia e primeiro balcão, num total de 432 lugares e um pequeno bar. Eram exibidos dois filmes por sessão com desenhos animados no intervalo. 


2 de Maio de 1929




Em 26 de Março de 1965, Baldomero Gonçalves Charneca obteve o alvará nº 77/1965, para venda de bebidas no bar do "Cinema Popular", e  assim descrito : «Licença para exercer o comércio de venda de bebidas alcoólicas engarrafadas, tanto nos próprios recipientes como à taça, tanto nos próprios recipientes como à taça, no seu estabelecimento, sito na Rua Direita de Marvila, nº 10 e 18 em Lisboa.».

Depois de encerrado em definitivo, nos finais da década de 80 do século XX e posterormente demolido, foi construído no seu lugar o quartel provisório da "Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Beato e Penha de França", inaugurado em 23 de Novembro de 2024.

Entretanto, em 1968, o "Cine Pátria" encerraria as suas portas temporáriamente, para voltar a abri-las no início da década de 70 do século XX, após terem sido ectuadas obras de recuperação e de remodelação. Nesta altura, eram projectados filmes indianos e de cowboys, sendo que na última sessão eram exibidos filmes pornográficos ...

"Cine Pátria" em foto de 1974 (in: "Vamos ao Nimas" de Lauro António)

Com a D. Isaura da Luz Mendonça Charneca - «A esposa do Sr. Charneca era efectivamente uma brasa, para dar forma a tanta beleza o marido abriu-lhe uma casa de roupa de senhora em frente ao Cinema, e as peças mais exibidas nas montras eram lingerie» - e seu marido como proprietários e gerentes, o "Cine Pátria" viria a encerrar em definitivo no final da década de 80 do séc. XX. Depois de restaurado, passou a funcionar como igreja de uma confissão religiosa que não católica, por alguns anos. Actualmente as suas instalações encontram-se devolutas.

Foto de Agosto de 2024, via "Google Maps"

Bibliografia:

blog "Ruas de Lisboa com Alguma História

fotos in: Hemeroteca Digital de Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa, Ruas de Lisboa com Alguma História, Cinemas do Paraíso

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