Restos de Colecção: Grémio Literário

13 de agosto de 2024

Grémio Literário

As primeiras reuniões preparatórias para a elaboração dos estatutos da Associação "Gremio Litterario", foram noticiadas, na "Revista Universal Lisbonense" - redigida por Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875)  - datadas de 26 de Março e 2 de Abril, de 1846, conforme publico a seguir.


26 de Março de 1846

2 de Abril de 1846

O "Gremio Litterario" foi criado por carta régia de D. Maria II ( datada de 18 de Abril de 1846, e que passo a transcrever:

Ministerio do reino-Instruccão publica .- D. Maria, por graca de Deus, rainha de Portugal, Algarves, e seus dominios, etc. Faco saber aos que esta minha carta virem: que attendendo ao que me foi representado por parte do conselheiro d'estado, ministro e secretario d'estado honorario, Rodrigo da Fonseca Magalhães, na qualidade de presidente da commissão encarregada de formar os estatutos por que deve regular-se a sociedade denominada - Gremio Litterario - pedindo-me a approvação dos Estatutos que apresentava, assignados por todas as pessoas que compunham a mesma commissão; e considerando eu, que o fim d'esta associação é a cultura das lettras, e que pela illustração intellectual póde ella concorrer para o aperfeiçoamento moral: hei por bem, conformando-me com o parecer do conselheiro procurador geral da corôa, approvar e confirmar os estatutos da sociedade denominada - Gremio Litterario  -os quaes são compostos de nove capitulos, e setenta artigos, e baixam assignados, com esta carta, pelo conselheiro d'estado, ministro e secretario d'estado dos negocios do reino. Pelo que mando a todos os tribunaes, auctoridades e mais pessoas a quem o conhecimento da mesma carta competir, que assim a cumpram e guardem, e a façam cumprir e guardar tão inteiramente como n'ella se contém. Pagou de direitos de mercê a quantia de doze mil réis, e a de seiscentos réis do imposto dos cinco por cento addicionaes, como consta do conhecimento numero oitocentos trinta e cinco, com data de dezesete do corrente, passado pelo cofre central do districto de Lisboa. Não pagou direitos de sello pelos não dever. Dada no paço de Belem em dezoito de Abril de mil oitocentos quarenta e seis 

- A Rainha 

- Conde de Thomar.

Carta pela qual vossa magestade ha por bem approvar e confirmar os estatutos da sociedade denominada - Gremio Litterario - compostos de nove capitulos e setenta artigos, pela fórma retrò declarada. Para vossa magestade ver .

- Por decreto de sete de abril de mil oitocentos e quarenta e seis .
- Manuel Joaquim Marques Torres, a fez .
- Registada a fl. 44 do I.° 10 de cartas, alvarás e patentes. Secretaria d'estado dos negocios do reino, em vinte e tres de abril de mil oitocentos quarenta e seis .
- Francisco de Paula da Veiga .
- Logar do sello. »

O "Gremio Litterario" instalou-se inicialmente na Rua do Duque de Bragança, nº 26, passando sucessivamente pela Rua Nova do Carmo a partir de 1854, Travessa da Parreirinha (Rua Capelo), nº 5 e  "Palácio Farrobo", na Rua do Alecrim junto ao Largo do Barão de Quintella. Entre os seus fundadores as duas principais figuras do Romantismo, o historiador Alexandre Herculano Carvalho de Araújo (1810-1877) - sócio nº 1 - e o poeta e dramaturgo João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), e ainda o romancista Luiz Augusto Rebelo da Silva (1822-1871), o dramaturgo José da Silva Mendes Leal (1820-1886), e grandes personalidades da vida politica do liberalismo, como Rodrigo da Fonseca Magalhães (que redigiu os estatutos), Fontes Pereira de Melo, Rodrigues Sampaio, Sá da Bandeira, Anselmo Braancamp Freire, D. Nuno de Moura Barreto (futuro 1º Duque de Loulé), e da ciência, da economia e da velha e da nova aristocracia. 

1855

"Palácio Farrobo" a Rua do Alecrim, junto ao Largo do Barão de Quintella

«O Grémio Literário foi estabelecido em 1846, na rua do Duque de Bragança, n.° 26, onde, em Agôsto, se reüniu a Associação Protectora da Imprensa, e onde, a instâncias de Garrett e José Estêvão, se discutiu um memorandum para melhoramentos do pessoal e material da imprenșa. Os seus estatutos, votados em 31 de Março, preceituavam que os sócios seriam divididos em seis classes: ciências físicas e matemática, engenharia e arte militar, história natural e suas aplicações, medicina, ciências morais e políticas, literatura e belas artes. 
O Grémio Literário manifestou logo o desejo de fundar um jornal, abrir cursos de diferentes disciplinas e estabelecer palestras sôbre vários assuntos, o que foi objecto de um parecer assinado por Rodrigo da Fonseca, Oliveira Marreca, Daniel Augusto da Silva, José Tavares de Almeida e João Crisóstomo de Abreu e Sousa. Êste desejo só foi em parte realizado vinte anos depois, quando se efectuaram as conferências científicas e literárias de Andrade Corvo, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Carlos Bento, José Horta, Júlio César Machado, Fonseca Benevides, Luiz Palmeirim, Saraiva de Carvalho, Sousa Lobo, Carlos Testa, Silva Túlio, Francisco Beirão, etc.
Nesta época, o Grémio Literário ainda justficava a sua denominação, embora Teixeira de Vasconcelos dissesse:
 -"No Gremio, joga-se o whist, o boston, o bilhar, e agora até o gamão, como em qualquer botica; lẽem-se os jornaes e fala-se de cada cousa por breve espaço. De contendas litterarias, raras vezes; quasi nunca ... O Gremio é litterario, porque se escreve com seis lettras, e mais nada." 
Doze anos depois, escrevia Camilo Castelo Branco :
- "À instituição do Gremio Litterario pertencia cuidar de lettras. Fizeram-se alli alguns ensaios felizes de eloquencia. Depois, como a nossa gente é pouco amavel de palavriado, e as linguas inspiradas ganhassem saburro nas lides parlamentares as lettras fugiram de lá, rhetoricamente falando, porque todos os socios abrigam fundos conhecimentos do alphabeto." 
O Grémio Literário, hoje descaracterizado, mudou-se sucessivamente para a rua Nova do Carmo, travessa da Parreirinha (rua Capelo), palácio do Farrobo (na rua do Alecrim), e palacete do visconde de Loures, na rua de S. Francisco (rua Ivens), casa que foi à praça em 1863, pertencendo então ao Esteves Costa, o Petit-Janota, interdito por prodigalidade, e sendo arrematada por 38 contos e tanto pelo citado titular, que a modernizou.» in: "Lisboa de Outrora" de João Pinto de Carvalho ("Tinop")

Páginas iniciais dos Estatutos

Quanto às suas actividades no "Gremio Litterario", segundo os seus estatutos no seu Artigo. 9º:

«Haverá no Gremio seis Classes, a saber: 1.ª Sciencias physicas e mathematicas; 2.ª Engenharia e Sciencias militares; 3.ª Historia natural e suas applicações : 4.ª Sciencias moraes e politicas :  5.ª Litteratura e bellas-artes.»

Quanto a jogos, segundo o seu Artigo. 7º ...

«Poderá jogar-se o bilhar, e quaesquer jogos licitos, ou sejam carteados ou de tabola. Os jogos de azar são expressamente prohibidos, incluindo o ècartè. Todo o socio que transgredir esta disposição será expulso por intimação escripta do Conselho Director. »

E a quotas a pagar pelos sócios ...

«ARTIGO 3º

Todo o Socio effectivo é obrigado a pagar pela admissão uma joia da importancia de 5$000 réis, e uma prestação mensal de 500 réis.
   §1.° A joia deve ser paga dentro de oito dias, depois de expedida a carta de approvação, e respondem por ella os proponentes.
   § 2.° O socio que se ausentar ou despedir, tendo previamente prevenido o Conselho Director, poderá ser readmittido sem pagamento de nova joia.

ARTIGO 4.°

Podem ser admittidos como socios extraordinários todos os individuos que não tiverem residencia fixa em Lisboa.
   § 1.° O socio extraordinario só é obrigado á prestação mensal de 4$000 réis.
  § 2.° Ao socio extraordinario, que seguidamente tiver pago dez mezes de prestação, é permitido passar a Socio effectivo, sem que seja obrigado ao pagamento da joia de que trata o art. 3.°


Última página dos Estatutos

O começo do "Gremio Litterario", não esteve livre de problemas e polémicas, como se pode ler no artigo seguinte publicado em 13 de Novembro de 1848, no "Diario do Governo".


(clicar para ampliar)

Mas no livro "Estroinas e Estroinices" de Eduardo de Noronha, de 1922 ...

«A 28 de agosto de 1872 vae á praça o palácio da rua do Alecrim a requerimento d; D. Maria da Conceição Pereira Soares por penhora á condessa de Farrobo, D. Eugenia, curadora dos bens do marido. O rendimento era fixado em l.544$000 rs ; o seu valor cm 36:000$00. Andava arrendado ao Gremio Litterario até 1875. Alguns sócios pensaram adquirir a sua propriedade por meio de acções. Não o conseguiram.»


3 de Março de 1865

Em consequência do atrás citado, o "Gremio Litterario" veio-se a instalar, em 1875, no palacete que do visconde de Loures, na, então, Rua de São Francisco, 27-A, actual Rua Ivens, ocupando o piso térreo e o 1ª andar. Isto depois de, em 1871, D. Josefina Clarisse d'Oliveira (n. 1840), viúva do 2.º visconde de Loures (Ângelo Francisco Carneiro, 1837 - 1870), que se tinha tornado 2.ª viscondessa de Valmor pelo seu casamento com Fausto de Queirós Guedes (1837 - 1898), se tornar proprietária do imóvel. É um edifício exemplar da arquitectura romântica de Lisboa, preservado ao longo dos tempos, com o seu jardim de 1844, único nesta área histórica da cidade.


"Gremio Litterario" já no Palácio dos Viscondes de Loures na Rua Ivens (antiga Rua de São Francisco)

1880

Em 1882, a famosa Maria Rattazi, mencionou o Gremio, no seu livro "Portugal de Relançe", de 1888:

«Os cocheiros de Lisboa não são assíduos leitores de jornaes como os do Paris; a sua educação litteraria resente-se de varias lacunas. Entretanto, contam-se alguns admiradores da sciencia e dos sábios. Acontece, nào raro, que se um cocheiro nos conduz ao Grémio, uma associação litteraria das mais consideradas em Portugal, refere-nos a seu modo as occorrencias que dizem respeito aos mais illustres sócios do Grémio.»

Seis anos mais tarde, em 1888, uma das passagens em que Eça de Queirós refere o "Gremio Litterario" e o "Hotel Alliance" (que ficava no edifício da "Casa Havaneza" na Praça do Loreto) no seu livro "Os Maias" de 1888:

«Depois foi o Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletó. Então, perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalar também, ir tomar o seu grog ao Grémio com o maestro.
Meteram o marquês numa tipóia - e ele e Cruges desceram a rua Nova da Trindade, devagar, no encanto estranho daquela noite de inverno, sem estrelas, mas tão macia que nela parecia andar perdido um bafo de maio.
Passavam à porta do Hotel Alliance quando Ega sentiu alguém, que se apressava, chamar atrás: 
- «Ó Sr. Ega! V. Exc.ª faz favor, Sr. Ega?...»

Em 1899, o "Gremio Litterario" foi alvo de grandes obras de decoração de José de Queiroz, nas salas e na varanda aberta sobre o Tejo e o Castelo de S. Jorge.


Sala Luiz XV, em Junho de 1911


Sócios a jogar xadrez no Salão Luiz XV, em foto de 12 de Fevereiro de 1910


13 de Fevereiro de 1911

Uma actividade intelectual, de conferências, cursos sobre literatura, arte, arquitectura, economia politica, direito, ministrados por especialistas de renome, correu a par com uma vida mundana própria da sociedade do século. As suas salas, a biblioteca, o famoso gabinete de leitura de jornais foram frequentados por gerações sucessivas de sócios e a menção ao Grémio Literário encontra-se em muitas obras de autores célebres, como Teixeira de Queiroz, Abel Botelho, Ramalho Ortigão, Júlio de Castilho, G. Mattos Sequeira, e sobretudo em Eça de Queiroz, - como já mencionado anteriormente - que nele localizou várias cenas de "Os Maias" - sabendo-se que, no prédio do lado, habitava Maria Eduarda, a maior criação romanesca feminina do século XIX português…

"Semana de Armas Portugueza", nos jardins do "Grémio Literário", com a presença de el-Rei D. Manuel II em Junho de 1910

Em 1911, o edifício é propriedade dos herdeiros da 2.ª viscondessa de Valmor, representados por António Joaquim de Oliveira, e entre 1930 e 1972 viria a ser propriedade de D. António Herédia e D. Josefina de Guedes Herédia.

As equipas de esgrima e de xadrez do Grémio Literário tiveram lugar honroso na vida lisboeta, ainda em princípios do século XX, e foi nas suas salas que se realizou, em 1912, a primeira exposição "modernista" registada pela "História de Arte Portuguesa", nela tendo exposto pela primeira vez Almada Negreiros, que mais tarde seria sócio honorário do "Grémio Literário". Se a evolução dos costumes da cidade fez abrandar a frequência significativa do Grémio Literário até meados de dos anos 60 do século XX, o seu papel cultural e mundano foi recuperado e, graças à direcção de Gerald Salles Lane, com grandes obras de decoração de Duarte Pinto Coelho e instalação de um bar e de um restaurante de qualidade. O "Grémio Literário" adquiriu um novo lustre, que a famosa conferência de Valéry Giscard d’Estaing, em 1969 e a colaboração na vinda, em 1974, da "Comédie Française" ao "Teatro de São Luiz", completaram. Foi criado o "Centro de Estudos do Século XIX", então, sob a direcção de Vitorino Nemésio, Joaquim Veríssimo Serrão, José-Augusto França, José Tengarrinha, realizando-se conferências, publicações, cursos e colóquios internacionais e enriquecendo-se a biblioteca de especialidade.


A propósito da Exposição evocativa de Eça de Queiroz, o jornal "Vitória" escrevia um pequeno apontamento do qual retirei o início:

«Naquelas salas discretas e habitualmente calmas do Grémio Literário - ali a rua Ivens - ia uma azáfama tumultuante e ruidosa quando o repórter lá entrou - a saber notícias da anunciada exposição do Centenário de Eça de Queiroz.
Carpinteiros, estucadores, electricistas, pintores, marceneiros, decoradores, estofadores - transformaram, estão transformando por completo as quatro salas do Grémio, através das quais se estende a evocação do artista incomparável e da época e dos ambientes em que viveu. Sob a orientação do Secretariado Nacional da Informação, que traçou o plano da exposição - o pintor de raça que é Manuel Lapa, o artista subtil e moderno que é Jorge Matos Chaves, com a colaboração do seu camarada Eduardo Anahory (nomes que deram
Já as suas provas em tantas manifestações de arte e de bom gôsto), estão erguendo uma realização plástica de incontestável sabor.(…)»

Em meados da década de 90 do século XX, um Conselho Literário reactivado passou a promover a apresentação de escritores (como Lídia Jorge, José Saramago, David Mourão Ferreira, Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner, Urbano Tavares Rodrigues), de livros recém-editados, de filmes em antestreia, de concertos, a realizar comemorações (de Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Balzac, Victor Hugo), realizando, anualmente, em 25 de Novembro, um jantar dedicado à memória de Eça de Queiroz, na data do seu nascimento.



Medalha comemorativa do 150º aniversário do "Grémio Literário", em 1996

Por portaria nº 206/2018 de 19 de Maio, o "Palacete de Loures" (onde se encontra sediado o "Grémio Literário"), incluindo o seu jardim e o património material e imaterial integrado, foi classificado, pelo Ministério da Cultura, como "Monumento de Interesse Público". No mesmo ano, o "Grémio Literário" foi reconhecido, pela Câmara Municipal de Lisboa, nos termos da lei 42/2017, como "entidade de interesse histórico e cultural local".


Entrada (exterior e interior)



Escadaria 


Bar


Sala de Jantar


Varanda


"Boiserie"


Salão Luiz XV


Biblioteca


Jardim interior

No âmbito da Comemoração do seu 175ª aniversário, em 2021, o "Grémio Literário" foi nomeado Membro Honorário da Ordem do Infante D. Henrique, condecoração atribuída pelo Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa. 


Emissão filatélica comemorativa

Bibliografia:

- Site do "Grémio Literário"
- "Estatutos do Gremio Litterario" - Typographia Portugueza - 1865


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