Restos de Colecção: Teatro Jordão e Teatro D. Afonso Henriques em Guimarães

17 de julho de 2023

Teatro Jordão e Teatro D. Afonso Henriques em Guimarães

O "Teatro Jordão", propriedade da "Empreza do Teatro Jordão, Lda." foi inaugurado na cidade de Guimarães a 20 de Novembro de 1938, com a designação oficial de "Teatro Martins Sarmento", em virtude de decisão política comunicada dias antes da sua abertura. Foi iniciativa do empresário Bernardino Jordão (1868-1940), - «concessionário da luz electrica em Guimarães» - que entregou o projecto e direcção de obra ao arquitecto e engenheiro civil Júlio José de Brito (1896-1965), cuja sua obra mais conhecida é o "Teatro Rivoli", no Porto. 


Bernardino Jordão (1868-1940)

Este Teatro nasceu da necessidade de dotar Guimarães de uma sala de espectáculos condigna, como já reclamava em 1929 a "Sociedade de Propaganda e Defesa de Guimarães". Nesta altura só existia o "Teatro Gil Vicente" já que o "Teatro D. Afonso Henriques" construído em 1853, já tinha encerrado.

«Por essa altura, havia muitos anos que o velho Teatro D. Afonso Henriques estava fechado (tendo sido publicado em 1933 um decreto que autorizava a sua demolição, para a abertura de uma rua de ligação entre a rua de S. Dâmaso e o largo da República do Brasil) e o Teatro Gil Vicente não reunia as condições necessárias, sendo mesmo classificado no Notícias de Guimarães de 5 de Fevereiro de 1933 como indecente, nauseabundo e indigno da nossa terra.»


O "Theatro Affonso Henriques"

O "Diccionario do Theatro Portuguez" - (1908) de Sousa Bastos, assim descreve o "Theatro D. Affonso Henriques:

«Pertence a um grupo de accionistas. Foi edificado em 1853. Possue dois gabinetes fechados, vistas bosque, jardim, mar, carcere, praça, casa pobre, inferno, sala regia, casa de campo, egreja, etc. 
Pelos preços usuaes rende 122$400 réis; mas as companhias que alli vão, costumam elevar os preços ao dobro. A despeza em cada récita é de 30$000 réis.
Tem 38 camarotes em 3 ordens, 176 logares de platea e 60 de galeria.
Já alli teem representado quasi todas as companhias de Lisboa e Porto e algumas hespanholas. Entre os notaveis artistas que teem representado n'este theatro contam-se os seguintes: Emilia das Neves, Taborda, Antonio Pedro, Lucinda Simões, Cezar Polla, josé Ricardo, etc.
O theatro aluga-se por 30$000 réis, incluindo aluguer da casa, illuminação electrica e empregados.»


                                              6 de Julho de 1876                                        17 de Setembro de 1879

Lembro que ss primeiras exibições cinematográficas em Guimarães, decorreram em Julho de 1897. O aparelho que permitiu as exibições dos primeiros quadros vivos em Guimarães foi o "Kinetographe Werner", construído pela firma "M.M. Werner Frères et Cie", fundada em 22 de Agosto de 1893, em Paris. As exibições eram incluídos nos espectáculos do "Teatro Guiñol - Bijou Infantil" que, depois das passagens por Porto e Braga, chegou a Guimarães em Julho de 1897, instalando-se num barracão no Campo da Feira. Nos vários espectáculos apresentados em Guimarães, o programa incluía a exibição e alguns quadros projectados pelo "Kinetographe Werner":

– Bate certo minha Zefa! 
– Ai Joaquina! – Apotheose a Mousinho d’Albuquerque.– As festas do Czar da Russia em Paris.
– As cançonetas por Rodrigues de Freitas: O Bravo do Mindello e os Meus vizinhos.
– Uma graciosíssima corrida de 6 bravissimos touros na praça do Campo Pequeno, de Lisboa.


Largo do Campo da Feira, com o "Theatro D. Affonso Henriques" à direita na foto

Em Guimarães, a primeira «sala» de exibição cinematográfica permanente foi aberta em Março de 1909, nas instalações do extinto "Theatro D. Affonso Henriques". Mais tarde, em Janeiro de 1912, a empresa "Menezes & Abreu" mudou o seu aparelho cinematográfico e a sua sala de exibições da "Associação Artística Vimaranense", da Rua de Gil Vicente, para o o edifício do extinto "Theatro D. Affonso Henriques". No Outono de 1914, instala-se neste edifício o "Cinema High-Life". 


5 de Outubro de 1919

Apesar do anúncio anterior, o jornal "Gil Vicente" em 9 de Novembro de 1919 publicava a seguinte nota:

«Guimarães tem um teatro como todas as terras, teatro que tem o nome de Afonso Henriques.
Ora acontece que este pardieiro, não oferece garantias contra um desastre. Alem de não possuir nada, absolutamente nada do que deve exigir-se numa casa que se destina a espectáculos, tem actualmente o inconveniente serio de não mostrar uma tábua que não tenha sofrido a acção da velhice.
Tudo aquilo está pôdre. Qualquer dia cai tudo e pobres dos assistentes á festa.»

Isto na altura em que, o empresário Luiz do Souto, tinha instalado, no início desse mesmo mês, o "Vimaranes-Cine" no edifício do ex- "Theatro Affonso Henriques" , substituindo o "Cinema High Life" ...


Planta do "Teatro Afonso Henriques" em versão "Vimaranes-Cine"


9 de Novembro de 1919

«O empresário Luiz do Souto era, por estes anos, o promotor de eventos mais inventivo e tornar-se-ia progressivamente no mais reconhecido da cidade. Um das suas mais mediáticas iniciativas foi transformar a Praça de Touros numa gigante sala de cinema ao ar livre. Entre 15 de Junho e 13 de Julho de 1919, o palco tauromáquico transformou-se num bem-sucedido palco cinematográfico, dando muita animação a um período que costumava ser “morto” em termos de exibição cinematográfica.» 


15 de Junho de 1919 

Outras actividades de Luiz do Souto, num anúncio de 5 de Outubro de 1919.


Quanto ao "Teatro Gil Vicente" , posterormente "Cine Gil Vicente" ...


"Teatro Gil Vicente" (primeiro edifício alto à esquerda)


"Teatro Gil Vicente" em anúncio como "Cine Gil Vicente" em 18 de Novembro de 1938

O anúncio publicitário anterior já é posterior ao conflito judicial entre arrendatários e proprietários do "Cine Gil Vicente", em 25 de Julho de 1935, e que levaria ao encerramento temporário do mesmo, a única sala de cinema da cidade, situação que se estenderia pelos 18 meses seguintes. No entretanto, os cinéfilos vimaranenses tiveram de procurar o cinema fora da cidade.

Foi criado uma espécie de «turismo cinéfilo» tornando-se cada vez mais frequente e mais organizado. A procura era tal que se começaram a organizar «excursões cinéfilas» a algumas povoações vizinhas, como Fafe, Vizela e Braga. A esse propósito o jornal "O Comercio de Guimarães" em 26 de Novembro de 1935 noticiava e comentava:

«No domingo a plateia do teatro de Fafe foi ocupada, integralmente, por publico vimaranense.
Para esse efeito saíram do Toural, em direcção à linda vila, seis camionetas e vários automóveis completamente cheios.
Censurá-los, porquê? Se se exibia o lindo filme Pupilas do Senhor Reitor e em Guimarães não há teatro…»

No dia 18 de Fevereiro de 1936, a Câmara Municipal de Guimarães reuniu em sessão extraordinária para decidir acerca da construção de um novo teatro. A ideia seria a reconstrução do "Theatro D. Affonso Henriques", que continuava de pé, por não se ter rasgado a rua prevista no decreto de 1933. Desta reunião não saiu qualquer solução para o problema, uma vez que logo começaram a circular rumores de que a reconstrução do velho teatro estaria encravada.

A 1 de Janeiro de 1937 Bernardino Jordão confirma ao jornal "O Comercio de Guimarães" as suas intenções de construir um novo Teatro: «Vou construir o teatro e conto que ele funcione já no próximo verão.» O mesmo assegurava que um arquitecto tinha iniciado os trabalhos, apreciando diversos locais prováveis para a implantação do tão desejado edifício, que teria as condições para receber espectáculos teatrais e cinematográficos. 

Entretanto, neste mesmo ano de 1937, o "Cinema Gil Vicente" retomara as suas actividades de exibição cinematográfica, após ter sido sanado o conflito que tinha obrigado ao seu encerramento por 18 meses.

Quanto ao projecto do "Teatro Jordão",  a sua memória descritiva informava...

«Este teatro cuja lotação está prevista para uns 1400 espectadores, destina-se a cinema e teatro, para o que fica dispondo de toda a aparelhagem e depências necessárias. Pelo facto do terreno se encontrar abaixo do nível da Avenida, cerca de 9,00 metros, tem este abaixo do nível da plateia, um rez-do-chão e um pavimento. Acima da plateia tem uma ordem de balcão e de camarotes e ao nível da plateia uma ordem de frizas, como se vê no projecto. Toda a estrutura do prédio é de cimento armado, incluindo as fundações. (...)»




Arquitecto Júlio José de Brito (1896-1965)


A sua construção, ficou a cargo da empresa "SIMCO, Lda." e começou a 22 de Fevereiro de 1937, na, então, Avenida Cândido dos Reis, atual Avenida D. Afonso Henriques, sendo «grandiosa» para a época, a atestar pelos seguintes dados publicados no programa distribuído aquando da sua inauguração:

«Para dar uma pequena ideia desta obra apresentam-se os seguintes dados: Gastaram-se entre outros materiais 979 camiões de areia, cascalho e saibro; 684 camiões de perpianho e alvenaria; 62 vagões de cimento, cal, gesso e marmorite; 13 vagões com 127000 quilos de ferro; 31000 ou sejam perto de 30 vagões de tijolos "SIMCO" gastos para os pavimentos. Só os pinheiros utilizados na obra somam um comprimento que chega para fazer uma via dupla desde a Praça do Toural até à Penha. As tábuas e escoras gastas nas cofragens e soalhos chegariam para fazer um tapamento a toda a volta da Praça do Toural com uma altura de 20 metros. Se carregássemos um comboio com todo o material gasto nesta obra, teríamos uma composição de 835 vagões excluindo a máquina e o tender ou seja um comprimento total de 9,2 quilóm., isto é, uma distância igual à que vai da estação de Guimarães até Vizela. Com as 926 lâmpadas num total de 46000 watts aplicadas na iluminação, e distanciadas de 10 m. podiamos iluminar toda esta linha.»



Em "O Comercio de Guimarâes" de 18 de Novembro de 1938

O "Teatro Jordão" tinha capacidade para mais de 1.200 espectadores. O programa da sua inauguração, que, como já foi referido, teve lugar a 20 de Novembro de 1938, foi composto por um "Serão Vicentino", representada pela companhia do "Teatro Nacional Almeida Garrett" ("Teatro Nacional D. Maria II), com a representação da peça "Monólogo do Vaqueiro", do "Auto Pastoril Português" e do "Auto Mofina Mendes". Amélia Rey Colaço, Lucília Simões, João Villaret, Álvaro Benamôr e Raul de Carvalho, faziam parte do fabuloso elenco. Nas duas noites seguintes 21 e 22 foram representadas as peças "Romance" e "Izabel, Rainha de Inglaterra" protagonizada pelos actores Amélia Rey Colaço, Robles Monteiro e Maria Clementina. O espectáculo de inauguração contou, ainda, com a participação da "Orquestra Ibéria".



Outra foto da mesma sala depois de encerrado em Dezembro de1993





Ementa da inauguração

E ,,, «A Sociedade de Perfumarias Nally, Lda. Representada nesta cidade pela firma Dias & Carvalho, Lda. manda por gentileza perfurmar a sala de espectáculos com "Noite de Prata"».


25 de Novembro de 1938


2 de Dezembro de 1938

Entretanto, a sua denominação de "Teatro Martins Sarmento" perduraria até Dezembro de 1940, altura em que o despacho do Ministro da Educação Nacional, autorizou o uso do nome de Teatro Jordão, já depois da morte de Bernardino Jordão, que ocorreu a 23 de Maio de 1940.


                                               13 de Dezembro de 1940                            20 de Dezembro de 1940


20 de Dezembro de 1940

Quanto ao cinema no "Teatro Jordão", transcrevo de seguida excertos de um artigo publicado no site "MaisGuimarães" que inclui excertos de uma entrevista ao vimaranese Sr. José Luís Fernandes:

«Na primeira pessoa, lembrando-se de várias histórias lá vividas, o vimaranense José Luís Fernandes recorda o esqueleto. “Os lugares não eram todos iguais, eram bilhetes numerados e havia imensas categorias”, diz. Frisas, plateia geral, plateia, camarotes, balcão. As memórias são várias. As frisas, na parte de baixo, levavam seis pessoas, como os camarotes, em cima. O bilhete mais barato era na plateia geral e o mais caro no primeiro balcão, onde os lugares eram estofados. O balcão era feito em escada, subindo degrau a degrau. Havia ainda um hall “muito grande”, onde tinha um bar e “uma menina a vender chocolates e aquelas coisas”. No fundo, os lavabos. O Teatro Jordão fez parte da vida de muitos vimaranenses e José Luís Fernandes frequentou-o sempre. “Vi fazer as obras”, comentou enquanto nos fazia viajar entre as paredes do espaço.


27 de Dezembro de 1940

As pessoas também faziam o Teatro. Dois bilheteiros: o do lado esquerdo chamava-se António, era barbeiro na rua de Santo António e, “se a memória não falha”, vendia camarotes e balcões; o do lado direto vendia plateia. Recorda ainda o operador de máquina, “o senhor Neves”, diz, e o fiscal, “que imigrou para o Brasil, chamava-se Caetano”.
Começou com apenas um filme por semana, ao domingo à tarde. A quinta-feira à noite passou a fazer parte da programação e as pessoas ganharam o hábito do cinema. A terça-feira e o sábado surgem no cartaz e o domingo passa a receber espectadores duas vezes, às 15h00, na matiné, e às 21h00, na sessão noturna.



"Teatro Jordão" em 1º plano e "Auto-Garage Avenida" a seguir ao 2º grupo de pessoas no passeio


"Auto-Garage Avenida" nos anos 30 do século XX, antes da construção do "Teatro Jordão"

“O sábado era dedicado aos filmes de cowboys. Não faltava a um”, revive José Luís Fernandes. Não se lembra de muita coisa do início do Teatro Jordão, tinha apenas 11 anos de idade, mas quando começou a trabalhar já “ganhava dinheirinho para comprar um bilhete para o cinema”. Quando o filme acabava, confessa, “ia ao Vira Bar beber um fininho e comer um prego”, ri.


                                         25 de Dezembro de 1945                                                28 de Dezembro de 1958



Ao domingo, da matiné, dez tostões davam entrada para duas pessoas, “normalmente eram os homens e os rapazes que iam ao cinema”. Havia ainda um lote de bilhetes para o mês todo e o porteiro furava os cartões, “como nos comboios”, conta. Por 30 escudos por mês, “a cadeira era nossa, ninguém se sentava nela”.»

De referir que no piso térreo do edifício funcionava o "Restaurante Jordão".

O "Teatro Jordão" encerraria em finais de Dezembro de 1993 e em Agosto de 2010 a Câmara Municipal de Guimarães compra do edifício à família Jordão, por 2,2 milhões de euros. 


1990



Dias antes do encerramento definitivo


2009


O edifício contíguo, a "Auto-Garage Avenida", viria a ser comprado em Fevereiro de 2014 pela Câmara Municipal de Guimarâes, para vir a ser parte integrante do novo projecto para o "Teatro Jordão". 

Em 2012 o projeto do arquiteto Miguel Guedes é distinguido com o primeiro lugar no concurso público promovido pela Câmara Municipal de Guimarães para a reabilitação e reconversão funcional do "Teatro Jordão". Em Maio de 2017, é lançado o concurso público para recuperação do edifício, mas que acaba por ser anulado, devido às empresas concorrentes não terem "cumprido as normas de procedimento". O início das obras terão lugar em Janeiro de 2019.





A inauguração do conjunto "Teatro Jordão" e "Auto-Garage Avenida" teve lugar em 12 de Fevereiro de 2022, como Escola de Artes Visuais, Artes Performativas e Música. A sala de espectáculos principal tem lotação para 400 pessoas.






Bibliografia: "Espaços de exibição de cinema em Guimarães: O caso do Cine-Teatro Municipal (1935)" - Paulo Cunha.  Boletim de Trabalhos Históricos - Série III - Vol II - Arquivo Municipal Alfredo Pimenta


2 comentários:

APS disse...

Magnífico poste que me trouxe boas recordações (obrigado!).
De "o operador de máquina «o senhor Neves»" posso referir que era o meu primo José Neves, e que sofria de alopecia.
Uma referência à belíssima iconografia que acompanha o texto.
Em 2018 (?) saíu, de Paulo Cunha, com o patrocínio do Cineclube de Guimarães, a obra "Cinema e Cinefilia em Guimarães / 1895-1957", mas o seu poste contém o essencial sobre o tema.
Muitos parabéns pela qualidade do poste!
Os melhores cumprimentos,

Alberto Soares

José Leite disse...

Caro Alberto Soares

Muito grato pelo seu amável comentário e informação adicional.
Os meus melhores cumprimentos
José Leite