A "Feira das Amoreiras", instalava-se na Praça das Amoreiras, sempre entre Junho e Agosto. A primeira realizou-se em 1851. «Em 1865 a mudou para o largo da Patriarchal Queimada; mas decidindo-se fazer alli um jardim, a tornou pouco depois a mudar para as Amoreiras». A última na Patriarchal teve lugar em 1868, já que «assim se decidiu em sessão de 27 de Maio». De regresso às Amoreiras, era principalmente frequentada por forasteiros e vendilhões, que quase todas as noites armavam zaragata. Esta passou depois para Alcântara, passando chamar-se "Feira de Alcântara".
Planta de 1857 com a localização da Praça das Amoreiras e da "Floresta Egípcia"
Nota: acerca da "Floresta Egipcia" falarei num próximo artigo neste blog, assim como de outros lugares de divertimento nocturno, em Lisboa, no século XIX.
Já nos anos 20 do século XIX «o Juiz e mais festeiros da capella de Monserrate ás Amoreiras promoviam, todos os anno, pela Paschoa, uma feira que durava tres dias, e que se fazia no largo das Amoreiras». Foi nesta feira que Alexandre Herculano que em 29 de Maio de 1828 «sem se saber como nem porquê, foi ferido» fruto de uma zaragata.
Os irmãos Dallot e Eduardo Villar eram proprietários de dois teatros de feira, começando como empresários na "Feira das Amoreiras". Aqui os teatros eram um amontoado de tábuas pintadas, de lonas às riscas e papéis de cores mal definidas. Ali se exibiram arlequins, robertos, circos de pulgas, alem dos citados teatrinhos. Ali nasceu o "Pim-Pam-Pum" (cada bola mata um), que resistiu até à extinta "Feira Popular de Lisboa" em Entre-Campos.
O teatro de “boulevard”, do famoso "Boulevard du Temple", em Paris, chegou a Portugal pela mão dos Dallot, que criaram uma escola de artes do espectáculo para muitos actores populares. Será o caso do actor espanhol Jaime Venâncio, autor de uma famosa opereta "O Processo do Rasga", e de sua mulher, a actriz Eliza Aragonez, que fez sucesso no "Theatro do Rato" e no segundo "Theatro da Alegria", onde representou Torpeza, e, posteriormente, no "Theatro da Rua dos Condes" e no do "Theatro do Principe Real" (1897), na paródia "José João".
Á porta dos teatros de feira chamavam-se os clientes espectadores:
– Esta é a barraca frequentada pelas damas diplomáticas!... (…)
– Vai principiar, senhores!
– Já vai tocar-se a grrrande sinfonia, e dar começo ao espectáculo!
– Toca a música! berra um d’esses Cíceros da feira, rompendo em eloquência. Comprem os seus bilhetes, senhores; a função hoje é a melhor. Admirável! É admirável! Entram todos os artistas da companhia.
É um delírio. As três barracas da entrada (…) abalam-se de júbilo e de bulha! É a metralha toda do motim musical, abrindo com os latões, que são o artigo de fundo da harmonia, trrrão, tão tão, até já não haver forças para tocar o rufo, e assoar com os beiços o nariz de pau de pifano!...
E o palhaço grita ainda por cima daquela inferneira:
– Entrem senhores! Aproveitem os poucos lugares que ainda há e passem a tomar assento no meio da numerosa e escolhida sociedade, que está lá dentro à espera de que vá o pano acima! » Por Julio Cesar Machado (1835-1890)
Quanto à "Feira das Amoreiras" e os artistas, o livro "Mulheres da Beira - Contos por Abel Botelho", de 1898, descrevia:
Elle pertencia a Caçadores 2, aquartelado em Valle do Pereiro; portanto, não longe do largo do pittoresco mercado, que a magestosa arcaria do aqueducto ladeia, n'uma affirmacào colossal de solícita previdência. Assim, cada tarde seguia para lá invariavelmente, e por lá vagueava ditoso, até ao recolher. Por vezes mesmo levava o seu enthusiasmo polos Dallot e o peixe frito ao ponto de se arriscar a pedir uma dispensa do recolher. Se a lograva, que reinação impagavel !
Plantava-se, horas seguidas, ante os barracões dos theatros, a remirar convulsionado os palhaços, os gladiadores, as actrizes, sobretudo as dançarinas, - anemicas, doentes, soffredoras, - sujamente vestidas de cassa, de papel doirado e de panninho.
Aquelles pernis desangrados e esguios que a malha cor de carne vestia, n'uma escarnecedora abundância de rugas sobrepostas; aquelles seios murchos, longos, pendentes, numa bandalhice aceusando a fome, a crapula e o desmazêlo ; aquellas claviculas salientes e pontudas, escala- vrando os collos em desegualdades tragicas de protesto, eram outros tantos aphrodisiacos poderosos para o bom do rapaz. Davam lhe energicos rebates na sensualidade ; punham lhe desejos febris na carne.
Emfim... rapaziadas, verdores, éstos do sangue dos 20 annos, — que admira!»
Quanto aos Dallot o livro "Estroinas e Estroinices" de Eduardo Noronha, publicado em Maio de 1922, faz uma belíssima descrição, que passo a transcrever alguns passos:
O occorrido nos nossos antigos e portuguezissimos tablados, bafôrdos, pateos, corros, mogigangas, festas, recreios e diversões populares e da corte fornecia elementos para se elaborar uma obra recheada de interesse e de attractivos.
Entre os innúmeros donos de barracas de espectaculos, que peregrinavam por todas as feiras do paiz, o mais popular, o mais applaudido, o que attingiu maior longevidade, foi Carlos Dallot.
Filho de funambulos, Carlos Dallot, seu irmão Joseph e a irman Julia, tinham os trez nascido em Versailles. Porque sahiram da sua terra, em 1846 ou 1848. elle, Carlos, na edade de nove annos? Naturalmente por causa da profissão dos pães, que os obrigava a deslocarem-se sem descanço n'uma existência nómada. O que os trouxe a Portugal de preferencia a outro paiz? Ninguém o averiguou. O que se sabe, segundo as suas próprias declarações, é que se apresentaram pela primeira vez ao publico lisboeta na antiga pista do Salitre, simultaneamente praça de toiros e circo equestre. Tempos depois mostra-se na velha praça do Campo de Sant'Anna e em seguida no circo do Price, sacrificado em holocausto á expansão da avenida da Liberdade.
Clowns, gymnastas, acrobatas, elles ; "jongleuse", a Julia, depressa conquistaram nomeada entre os frequentadores d'essa espécie de diversões. O Price escriptura os três irmãos na sua companhia e leva-os comsigo primeiro para Hespanha, que percorrem de um extremo ao outro, depois para Inglaterra, onde arrancam entusiásticos applausos ao publico de Londres, de Liverpool, de Manscheter, de Olasgow, das principaes cidades do Reino Unido, em competência com Wittoyne e outros artistas de egual renome.
Na feira das Amoreiras, entre outros números de sensação, hypnotiza as pessoas que se prestam a isso. Adormecia um rapaz, agarrado a uma vara. Em seguida, no somno magnético, elevava-o até formar com a vara um angulo recto. Abandonava o corpo que se mantinha n'essa impossível posição até que acordavam o somnolento. Nunca mais, nem o Onofroff, um hypnotizador inventado por António Santos, e que no Coliseu de Lisboa, da rua da Palma, deu alli enchentes successivas, com todas as pantomimices, nem outros magnetistas de egual jaez, precedidos de retumbante fama, realizaram trabalho mais limpo.
Julia Dallot no regresso enamora se de um portuguez e casa com elle. Morre ha cerca de quatorze annos em Pedrouços dei- xando descendência, que continua o mesmo género de vida da familia, sendo dona de barracas que surgem e se armam confor- me o itinerário das feiras.
Os irmãos Dallot visitam todo o paiz. Ha quasi quarenta annos estadeavam as suas habilidades na Madeira e nos Açores e em especial nas ilhas de S. Miguel e da Terceira. Improvizam os seus theatros em Santarém, no largo dos Pastelleiros, no Campo de Sá da Bandeira, por occasião da feira da Piedade; e, em outubro, e no largo do Milagre, em abril, no mercado d'essa designa- ção. Ahi morreu ha perto de vinte annos Joseph Dallot, que deixou uma filha. Estrella Dallot, actriz mais tarde na companhia ambulante do actor Oliveira Tainha.
Trabalham com igual exito na feira de S. Miguel, no Porto, na rotunda da Boavista; na feira de S. Lazaro, no Poço das Patas; na romaria de Mattosinhos, em diversas das cercanias.
Um dos dois irmãos torna se proprietário do antigo theatro das Carmelitas do Porto, hoje desapparecido. Pôe em scena a magica O ramo de oiro. Ganhou muito dinheiro. Um dia apaixona-se pela mulher de um sapateiro. Foge com ella. Para se precaver contra as exigências dos credores antigos, deposita em nome da transitória amante dez contos, que forrara. A divindade morre. O marido vinga se ao abrigo da lei. Saboreia o lucrativo castigo da traição da cara metade e do seductor, recebendo como legitimo herdeiro, os dez contos de Dallot.
A companhia representava n'essa occasião a peça "Resonar sem dormir" e incluia no seu reportório os dramas : "Gatuno consciencioso"; "João, o Corta-mar", "Pena de Morte", "Veteranos da Liberdade", etc. N'esse momento um dos números que o publico ovacionava com phrenesi era o "Manto Magico", imitação da "Dança serpentina", bailada com projecções por sua filha Salud Dallot. O velho saltimbanco emprezario introduzira melhoramentos nas suas récitas e explorava tambem o animatógrapho.
As barracas de feira exercem salutar influencia no animo do publico pouco culto, favorável em extremo ao theatro : habituam-n'o a esse género de diversão. Cito os irmãos Dallot porque, pela sua barraca passaram artistas que depois subiram de categoria e que o publico muito apreciou. Obedeceram a estas condições, além d'outros, o Joaquim "Confeiteiro"; ; o tão popular Malhão do "Processo do Rasga", applaudidissimo nas farças e scenas cómicas da época , Alfredo de Carvalho, o chistoso «compére» das revistas de Sousa Bastos; Joaquim Silva, da Trindade, inimitável no Homem da Bomba ; actriz Elisa Aragonez ; Conde ; o scenographo Venâncio, etc. Os irmãos Dallot primavam na arte da mímica e alguma coisa ensinaram aos seus discipulos, portuguezes e hespanhoes, disseminados por vários rincões do paiz e que eram convocados na perspectiva de qualquer funcção.»
Voltando á "Feira das Amoreiras":
A feira, depois de ir da Patriarcal para esse sitios, decahiu successivamente. Em 1868 a falta de concorrência obrigou os únicos dois theatros alli armados a fecharem. Em 1877 ainda ahi se enfileiraram cincoenta e nove barracas. Esse esforço equivaleu ao canto do cysne. Esta anedocta para terminar o capitulo :
- Oh ! com a fortuna ! Não posso ser agradável ao sr. Silva. Vocemecê precisa de um bonnet especial para desempenhar esse logar, e emquanto lhe fazem o bonnet... desarma-se a barraca!... »
Em 1909, Charles Dallot encontrava-se no Dafundo, onde montara o seu teatro-barraca, feito de madeira e lona, a que chamara de "Theatro Chalet Recreio Gloria". Viria a falecer a 6 de Dezembro de 1916. Seu irmão Joseph Dallot já tinha falecido cerca de dois anos antes.
A "Feira das Amoreiras" acabou no final do século XIX, por volta de 1880, como se pode ler no seguinte excerto do livro "Lisboa Illustrada" de Alfredo Mesquita e publicado em 1903:
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