O primeiro filme sonoro (fonofime) português “A Severa”, realizado por Leitão de Barros (1896-1967), protagonizado por Dina Tereza (1902-1985), com música do maestro Frederico de Freitas (1902-1980), estreou-se em 17 de Julho de 1931, no “São Luiz” em Lisboa. Em 29 de Junho estrearia na cidade do Porto, no Cine-Teatro “Aguia d’Ouro”.
José Leitão de Barros (1896-1967) Frederico de Freitas (1902-1980) Dina Tereza (1902-1985)
Empresa distribuidora do filme “A Severa”
«A Severa desembarcou do Sud, levaram-na à presa para o palco do S. Luiz, a Alfendega pesou-a, a censura viu-a passar na tela, e, duas horas depois de ter chegado. A Severa era apresentada em recita de gala, com todas as honras devidas ao primeiro fonofilme português.» in "Diario de Lisbôa".
“Severa” (Dina Tereza) conduzida pelo “Timpanas” (Silvestre Alegrim) num evento promocional em 3 de Junho de 1931
Acerca de Maria Severa Onofriana, nascida em Lisboa em 26 de Julho de 1820 e falecida em 30 de Novembro de 1846, também em Lisboa, vou transcrever parte de um texto do livro “História do Fado” de Pinto de Carvalho (Tinop) - original de 1903 e editado em 1910, pela “Livraria Moderna Editora”:
«Maria Severa - assim se chamava ella - não era cigana
como propalou a lenda, mas nascera na Madragôa.
Sua mãe, a Barbuda, tinha uma das tres tabernas que
então havia n'aquella rua, e alcunhavam n'a assim,
porque possuia tanta barba, que a obrigava a cortal-a
frequentemente e a encobril-a com um lenço. Alli, en
plein cabaret, a Severa batia o fado com o Manosinho,
o mais antigo fadista do sitio, e com o Mesquita, um
fadistão que andara embarcado. Uma vez, chegou a
bater o fado com o Manoel Bolas, depois intelligente
das toiradas, mas que, n'aquelle tempo, era um rapazote,
quasi um fedelho.
Durante um curtíssimo parenthesis, a Severa habitou
n'uma betêsga do Bairro Alto, onde Luiz Augusto Palmeirim
a topou. Pessoa digna de credito affirmamos
que ella morou na travessa do Poço da Cidade,
n'uma porta de rua. Isto passou-se antes da Maria da
Fonte, ahi por 1844 ou 1845. A Severa e a sua inseparável
mãe mudaram se d'alli para a rua do Capellão
(vulgarmente chamada rua Suja), então frequentadissima
pela marujada ingleza e portugueza.
Severa numa aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935)
Maria Severa habitou duas casas n'aquelle sitio: a loja
da rua do Capellão n.° 36, moderno, á esquina do becco
do Forno, e um primeiro andar da rua da Amendoeira,
n'um prédio que pertencia ao conde de Vimioso, e de
que ella nunca pagou renda. Este prédio arruinou-se,
cahiu e fui substituído por outro, cuja porta de escada
tem o n.° 6, moderno, e, sobre ella, ainda se conservam
os primitivos azulejos, tendo uma imagem com a legenda:
Toda sois formosa, Maria. 1777. N'esta ultima casa,
junto com a Severa,habitou a tarasca da Barbuda, que
lá continuou a residir, quando a filha se mudou para
a esquina da rua do Capellão e do becco do Forno, e
que também nunca pagou renda ao senhorio.
Porta da casa (de esquina) onde viveu a Severa na Rua do Capelão e com o Largo da Severa na foto da direita
Largo da Severa e Rua do Capelão
Antes da Severa encetar os lendários
amores com o conde de Vimioso, tivera outros com
um rapaz do sitio da Mouraria, o Chico do 10, assim
alcunhado por ler pertencido ao regimento de infanteria 10. A Severa, porém, cambiou os amores d'este
barregueiro pelos de outro. Ut unda pérfida! o Chico
do 10 sentiu a tear-se a chamma do ciúme no seu peito
escandecido pela paixão, revoltou-se contra a bancarrota
do seu ideal e a decadência do seu sonho, e
jurou vendetta. A consequência foi ir, certa madrugada,
esperar o rival á rua do Capellão e assassinal-o ás navalhadas,
correndo, em seguida, a lavar o instrumento do
crime na bica do chafariz do Soccorro. E, no seu espirito
allucinado, levantar-se-hia a figura da Severa,
como uma estatua dolorosa em face do pallido triumpho
da aurora, que derramava ternuras envolventes!...
O Chico do 10 foi expiar a culpa nas costas de Africa,
e lá morreu ; e o acto criminoso apagou-se na névoa
do Passado, e, bem depressa, se reduziu a uma longiqua
recordação na memoria local.
Severa conheceu, immediatamenle ao crime, o
conde de Vimioso, que a buscou, attrahido - como um
iman - pela fama que ella disfructava de tratar por tu
as musas fáceis, de ter um palavreado de muito pico
e de cantar, inegualavelmente, ao som namorado da
soluçante guitarra. Foi o amor pelas guilarradas e pelo
doce canto-em que se bordam os themas ascendentes
do Desejo -, que levou o conde de Vimioso a procurar
a Severa, porque elle não tocava, não cantava e não
tinha o minimo gosto para a musica. A Severa cantava
e batia o fado na taberna da Rosaria dos oculos,
que ficava no tôpo da rua do Capellão, na chamada
casa de pedra.
D. Francisco de Paula de Portugal e Casto - 13º Conde de Vimioso (1817-1865)
Maria Severa morreu, segundo papagueia a lenda,
de uma indigestão de borrachos regados de boa pinga.
Mais uma vez, porém, somos forçados a rectificar a
lenda. A Severa adoeceu na sua casa da rua do Capellão,
á esquina do becco do Forno, e foi conduzida ao
hospital, onde se finou na enxerga de uma enfermaria
especialista.
E essa comborça miserável, que, como os deuses
e os conquistadores, teve os seus holocaustos, acabou
no hospital, porque o hospital è a face sombria desse
outro Jano, que se chama - a prostituição! Ao tempo,
já o conde de Vimioso pozera termo aos seus amores
com essa mulher, em que a graça fadista se alliava
á energia farfante como a sombra se mistura á luz
n'uma bella paizagem. E averiguámos que, em 1830,
já Maria Severa mergulhara nos abysmos fuliginosos
da morte, depois de ter conquistado os loiros enlameados das bacchanaes pandilhas e de se ter nimbado com
a aureola da legenda hordeleira.»
O guião do filme “A Severa” baseia-se, no romance e peça de teatro homónimos de Júlio Dantas (1876-1962), médico, político e diplomata que desenvolveu também uma intensa actividade como escritor. Neste domínio, o seu prestígio ficou fundamentalmente associado às peças para teatro “A Severa” de 1901 e “A Ceia dos Cardeais” de 1902. Para além de autor do texto, Júlio Dantas foi também o adaptador da peça “A Severa” para o cinema.
A Severa é representada pela actriz e corista Dina Teresa Moreira de Oliveira (1902-1985), pertencente ao elenco do “Teatro Maria Vitória”, que tinha aberto em 1 de Julho de 1922 no “Parque Mayer”, em Lisboa, e a quem Leitão de Barros sugeriu que adoptasse o nome artístico de Dina Teresa. A figura que representa é introduzida no quadro de uma charneca ribatejana como uma artista itinerante (cigana). Cenas de largadas de touros e uma breve apresentação de um coral masculino aludindo ao cante alentejano desenham a transição para as sequências associadas a Lisboa, onde decorre grande parte do enredo do filme. Em Lisboa, na Mouraria, a Severa, que tinha já sido seduzida pelo Conde de Marialva, e representado pelo toureiro António Luís Lopes, nas cenas iniciais, torna-se sua amante, não obstante a presença de rivais como a Marquesa de Seide (Maria Sampaio), com quem a Severa se encontra numa festa nos jardins do Palácio de Queluz, ou de admiradores da Severa, como o Romão Alquilador (António Fagim). O contraste entre a aristocracia lisboeta e as classes desfavorecidas acaba por ditar o destino fatal da Severa: a defesa de Custódio (Ribeiro Lopes), um pobre admirador, leva ao fim da relação da Severa com o Conde. A reconciliação final não chega atempadamente, e a Severa morre nos braços do Conde, enquanto nas ruas da Mouraria decorre um animado arraial das festas de Santo António.
Publicação com o título “Recordação do Primeiro Filme Falado Português”
Publicação gentilmente cedida pelo blog Malomil
As filmagens de “A Severa” foram efetuadas em Portugal e em França, em Epinay-sur-Seine. Em Portugal foram gravadas as cenas de exterior, nomeadamente as sequências ribatejanas do início do filme, em que é apresentado o princípio do romance entre a Severa e o Conde de Marialva, a festa da aristocracia filmada nos jardins do “Palácio de Fronteira” e “Palácio Nacional de Queluz”, em que é evidenciado o contraste entre a Severa e a elite social aí presente, e também a tourada na arena de Algés, durante a qual se dá o fim da relação entre a Severa e o Conde, antecedendo a morte da fadista. A rodagem das cenas de interior, assim como as tarefas de pós-sincronização, decorreram em França.
Partida dos artistas na Estação do Rossio, rumo a Paris em 25 de Janeiro de 1931
O sistema de sonorização utilizado pela produção de “A Severa” foi o Vitaphone, sistema patenteado pela “Bell Telephone Laboratories e a Western Electric” em 1926, e adquirido no mesmo ano pela “Warner Brothers Pictures Inc.” que o utilizou até 1930. Consistia em gravar separadamente o som em discos que eram depois postos a tocar, juntamente com a projeção da imagem, de forma sincronizada.
Sistema “Vitaphone”
Por essa razão, os actores e/ou cantores que participaram na “Severa” tiveram que gravar previamente não só as suas falas mas também as suas canções. Para todos esta era uma experiência absolutamente estranha e de difícil adaptação, sobretudo porque não existia público nem qualquer tipo de interação de palco. Dina Teresa, por exemplo, refere-se à sua experiência como «enervante e perturbadora« explicando, numa entrevista publicada na revista “His Master’s Voice” em 31 de Dezembro de 1931, relatando: «quando foi da Severa (...) esqueci-me e cantei como se estivesse em público. (...) Confesso-lhe, com toda a franqueza, que se passa um mau bocado». Silvestre Alegrim, protagonista de um dos temas do filme que mais se popularizou - o “Timpanas” ou “Sol-e-Dó dos Bolieiros” -, teve reações adversas à gravação que por vezes o impediram de cantar. Na mesma revista ele chega a referir-se à sua experiência como torturante: «Custou-me muito. Nem calcula as torturas que passei! Isso de gravar é o que se chama um caso grave. Atormentava-me sobretudo a ideia de estar cantando para um público auzente, de não me poder certificar, como acontece no teatro, do agrado ou desagrado do auditório. Depois o menor erro, o menor deslize, ali fica sem correcção possível. É de uma responsabilidade enorme.»
Primeiros fotogramas dos genéricos do filme
Estreia de “A Severa” em 29 de Junho de 1931, e logo de seguida, em 29 de Agosto do mesmo ano, outro fonofilme português “A Minha Noite de Núpcias”, ambos no Cine-Teatro “Aguia d’Ouro” no Porto
Enquanto filme sonoro português, “A Severa” foi apenas precedido pela produção de filmes dobrados em português para mercados lusófonos, nomeadamente pelos estúdios da agência francesa da “Paramount Pictures Corporation” em Joinville. Realizado por Leitão de Barros (1896-1967), já então com uma carreira consolidada no âmbito do cinema, e responsável por um dos mais importantes marcos do cinema mudo português, o documentário/ficção “Maria do Mar” de 1930, “A Severa” foi pensado não somente para distribuição em Portugal, mas também como um produto para exportação, como testemunham os materiais de divulgação em francês, por exemplo, que apresentam “A Severa” como «une œuvre qui intéressera le public de tous les pays par son folklore et son pittoresque inédits et merveilleux». Seria também exibido no Rio de Janeiro, Brasil, em 1945 como atesta o seguinte anúncio, publicado no “Diário da Noite” do Rio de Janeiro.
Propaganda em França 17 de Junho de 1931
Propaganda no “Diario da Noite” do Rio de Janeiro em 26 de março de 1945
Resta dizer que o filme “A Severa” foi um êxito de bilheteira, tendo-se mantido em exibição no “São Luiz”, por seis meses. Em 28 de Dezembro de 1931, seria estreada no Cinema “Olympia”, na Rua dos Condes, a versão muda de “A Severa”.
Seguir-se-ia a estreia de outro êxito retumbante: “A Canção de Lisboa”, o primeiro filme, verdadeiramente sonoro português, em que as tomadas de som eram simultâneas com as de imagem gravadas em banda sonora, totalmente rodado em Portugal, tendo estreado em 7 de Novembro de 1933, no “São Luiz”.
Este filme também foi realizado em versão muda com 3000 metros - 110 minutos, musicada por Júlio Canhão, com estreia no “Olympia” de Lisboa, em 28 Dezembro 1931.
Obs: Para quem não conhece o filme “A Severa”, poderá vê-lo numa versão completa e restaurada, no “Youtube” bastando clicar ou na foto seguinte, ou no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=3rLgwx7tZ-c&t=566s
Ficha Técnica:
Elenco:
António de Almeida · D. José
António Fagim · Romão Alquilador
António Luís Lopes · D. João, o Conde de Marialva
António Vilar
Augusto Costa - Costinha · Marquês de Seide
Baltazar de Azevedo
Clotilde de Matos
Dina Teresa · Severa
Eduardo Dores · Cigano
Fernando Dinis
Luísa Durão
Maria Isabel · Chica
Maria Sampaio · Marquesa de Seide
Mariana Alves
Oliveira Martins · Duque
Paradela d'Oliveira · Dançarino de Fandango e Vira
Patrício Álvares · Diogo
Perpétua dos Santos
Regina Montenegro · Modista Francesa
Ribeiro Lopes · Custódia
Silvestre Alegrim · Timpanas Boleeiro
Tomás de Sousa
Equipa técnica:
Adaptação: Leitão de Barros
Argumento: Leitão de Barros
Assistente de Imagem: Aníbal Contreiras · Maurice Laumann · Alexandre Amores · José Nunes das Neves
Assistente de Montagem: Raul Reis (Som) · Olavo d'Eça Leal
Assistente de Realização: G. Weinstein · António Fagim · J. Bernard Brunius · A. Soares · António Leitão
Autor da Obra Original: Júlio Dantas (A Severa)
Canções por: Silvestre Alegrim · Maria do Carmo (Fados - acompanhada por Victor Ramos) · Dina Teresa · Paradela d'Oliveira · Mariana Alves
Construções: Guilherme Gomes
Coreografia: Francisco Graça (Francis)
Diálogos: Júlio Dantas
Direcção de Som: Waldemar Most
Fotografia: Guichard · Salazar Diniz
Iluminação: José Correia
Letra das Canções: Júlio Dantas
Música: Frederico de Freitas
Planificação/Sequência: J. Bernard Brunius · René Clair · Leitão de Barros · Jacques Coutance
Produção: SUS - Sociedade Universal de Superfilmes
Realização: Leitão de Barros
Sonoplastia: Lilly Jumele (e Mistura)
Entidades :
Tobis de Épinay-sur-Seine (França) · Estúdios
Tobis de Épinay-sur-Seine (França) · Registo de Som
Filmes Albuquerque · Distribuição
Internacional Filmes · Distribuição
Exteriores : Palácio de Queluz; Palácio Fronteira, Lisboa; Praça de Touros de Algés
O nome “Severa” viria a ser atribuído a três casas de fado em Lisboa, tendo uma delas existido na “Feira Popular”. A destacar, a mais antiga e célebre o “Retiro da Severa”, fundado, em 1933, por Jorge Soriano, inicialmente no “Luna Parque” do “Parque Mayer”, em Lisboa e dirigido por Alberto Costa. Em 26 de Outubro de 1935 mudar-se-ia para a Rua António Maria Cardoso, ocupando as antigas instalações do "Salão Jansen", da “Cervejaria Jansen” pertença da fábrica de cerveja “Jansen” que tinha a suas instalações no mesmo local. A história ilustrada desta cervejaria e casa de fados pode ser consultada no seguinte link: “Retiro da Severa”.
1935 Esplanada do “Retiro da Severa”
Outra casa de fados com o mesmo nome “Retiro da Severa” seria inaugurada em 20 de mauio de 1952 na “Feira Popular de Lisboa”, na Palhavã. Teria uma existência muito curta …
Actualmente, a casa de fados “A Severa”, inaugurada em 20 de Outubro de 1955 na Rua das Gáveas, mo Bairro Alto em Lisboa, pelo casal Júlio Barros Evangelista e Maria José Evangelista. Ainda em funcionamento, é considerada a casa de fados mais antiga de Lisboa pertencente à mesma família fundadora.
Fotos in: Arquivo Municipal de Lisboa, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Lisboa no Guiness, Fado Cravo, Malomil
7 comentários:
Artigo muito completo!
O primeiro desenho da Severa (encostada à porta) é de Roque Gameiro... seu sogro!
Cumprimentos
Gonçalo
Caro Gonçalo
Muito grato pela sua informação adicional.
Cumprimentos
José Leite
Meu caro Gonçalo
O desenho é de facto de Roque Gameiro mas dado que ele nasceu 18 anos depois da Severa morrer não estou bem a ver como é que pode ter sido seu sogro.
RuiMG
Expliquei-me mal! Seu sogro, do Leitão de Barros!!! Desculpe a confusão. Aliás a família Roque Gameiro, toda de artistas, foi-se associando sempre a mais artistas, como foi o caso de LB, e até hoje. Era aliás conhecida como a 'Tribo dos pincéis'!
Cumprimentos
G.
Caro Gonçalo
Agradeço a mensagem de resposta.
Pois lembra bem a "Tribo dos pincéis", todos com especial dedicaçâo à aguarela.
Jaime Martins Barata foi outro genro dele, como sabe.
Cumprimentos.
RuiMG
Um excelente trabalho de pesquisa, que merece
um elogio. Quem se interessar por cinema nacional,
tem aqui muita informação. Continuação de bons
trabalhos, para bem de todos os seus leitores.
D. Maria Franco
Muito grato pelo seu amável comentário.
Os meus cumprimentos
José Leite
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