Acerca da vida e obra do fabricante de flautas Ernesto Frederico Haupt (c.1720-c.1813) e seus descendentes, optei por transcrever um artigo muito bem escrito e esclarecedor, publicado em Abril de 1895, pela revista "Arte Portugueza - Revista de Archeologia e Arte Moderna sob a Protecção de Suas Magestades" e da autoria do musicólogo, pedagogo, flautista e compositor Ernesto Vieira (1848-1915). Quanto à biografia e actividade comercial de Manuel Antonio da Silva (?-1880), outro grande fabricante de flautas, recorri-me do "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes" do mesmo autor, e editado em 1900 pela Casa Lambertini.
Tendo perdido a sua carta de privilegio, naturalmente por occasião do terremoto, Frederico Haupt solicitou a recopilação d’ella, em 1757, o que lhe foi concedido em 19 de novembro do mesmo anno.
Empregava sempre excellente madeira, fosse ébano ou buxo, escrupulosamente escolhida. E vem aqui a proposito notar-se 0 seguinte facto: os antigos catalogos de fabricantes francezes, mencionando os instrumentos de maior preço, tinham a indicação - ébano de Portugal - para significar que eram construídos com a madeira de melhor qualidade. O ébano que nos vinha do Oriente e enviavamos aos mercados da Europa era reputado como o melhor.
A marca adoptada pelo primeiro Haupt, para distinguir os instrumentos que saíam da sua officina, eram duas cabe¬ ças humanas, vistas de perfil, tendo por legenda - Haupt - Lisboa. Todos os seus descendentes conservaram a mesma marca, de sorte que hoje' não é possível distinguir qual d elles teria fabricado qualquer instrumento que se apresente com essa marca, podendo apenas conjecturar-se a epocha da sua construcção, por certas differenças na fórma. Sómente Ernesto Haupt, de quem adeante fallaremos, empregou um distinctivo particular, em circumstancias que serão mencio¬ nadas no logar proprio.
Sobre a habilidade do primeiro Haupt, conserva a tradição uma anecdota, que eu ouvi contar, ha muitos annos, ao flautista José Gazul. Diz-se que, pouco depois da sua chegada a Lisboa, foi apresentar a el-rei D. José uma pequena peça, trabalhada em marfim, obra de grande paciência e delicadeza. D. José, emquanto a mirava, perguntou:
- Para metter na algibeira, respondeu o artifice, ao mesmo tempo que tirava o objecto da mão ao rei e o guardava.
Por motivos obvios, esta anecdota não é crivel; mas serve ella para demonstrar que o protogonista deixou memória tradicional de ser summamente habil.
Tomou este a direcção da casa ainda em vida do seu progenitor, por quanto já no anno de 1785 figura como dono e chefe da officina, agora elevada á categoria de fabrica, segundo se vê no seguinte documento, a muitos respeitos interessante:
"O PRESIDENTE E DEPUTADOS da Junta da Administração das Fabricas do Reino, e Obras de Aguas Livres. Concedemos licença a Antonio José Haupt para que possa abrir nesta Cidade huma Fabrica de Torneiro de Madeira e Metaes em que se fação Instrumentos Músicos castoens de Ouro, e Prata, e outras obras delicadas, que se guarnecem com os mesmos Metaes, á similhança das que neste Reino se introduzião dos estranhos; e isto em virtude da Real Rezolução de sua Magestade, a favor dos Artifices dos Novos Inventos; com declaração porem, que será obrigado a ensinar dous Aprendizes nascionaes, alem dos maes que em numero competente lhe forem arbitrados por esta Junta, instruindo-os sem rezerva alguma, sem que por este respeito lhes possa pedir ou acceitar prêmio algum, nem ainda pecuniário durante o tempo da sua obrigação, que não excederá de cinco annos; fazendo-os igualmente matricular na Secretaria da mesma Junta; e aos referidos dous dentro do tempo de seis mezes, contados da data deste; tudo na forma e debaixo das obrigações do Termo que assignou na dita Secretaria deste Tribunal; visto que pela sua pericia se constitue digno d’esta graça, que lhe facultamos por este Alvará por Nós assignado, e sellado com o sello desta Junta. Lisboa hum de Junho de mil setecentos oitenta e cinco.
(Sello impresso em branco, com as armas reaes cercadas pela legenda : Junta da Administração das Fabricas do Reino e Agoas Livres.)
No verso: «P. por despacho da Junta de 30 de Mayo de 1785".
É este o mais conhecido dos Haupts, aquelle que maior fama grangeou entre os nossos músicos, o qual ainda hoje se designa por Haupt pae, para o distinguir de seus filhos, que adiante mencionaremos.
Haupt pae, ou Ernesto Frederico Haupt, era homem de grande seriedade e consideração, artista habil, intelligente e laborioso, muito dedicado ao paiz em que nasceu.
Em 1810, isto é, quando completava dezoito annos, sentou praça no batalhão de caçadores voluntários de Lisboa, exactamente na epocha em que a capital se preparava para resistir á invasão de Massena.
Não deixou, porém, de trabalhar, ajudando seu pae, e substituindo-o quando elle falleceu.
Logo, porém, que alvoreceu o celebre dia 24 de julho de 1833, apresentou-se aos chefes das tropas constitucionaes, e foi, com o posto de tenente, nomeado commandante da força destacada para ir guardar o paço de Queluz. Seu filho mais velho, de quem adeante fallaremos, que então apenas contava quinze annos, imitou-lhe o exemplo, sentando voluntariamente praça n’esse mesmo dia, cabendo-lhe por isso a gloria de tomar parte nos combates das linhas de Lisboa.
Em 1835, Ernesto Haupt, lembrou a utilidade de se organisar no arsenal do exercito uma officina de instrumentos músicos. Acceita a idéa, foi o seu iniciador nomeado para dirigir a nova officina e construir os instrumentos de madeira que se requisitassem, ficando os instrumentos de metal a cargo de um especialista egualmente habil, chamado Raphael, com officina no largo da Graça.
Haupt estreiou-se no serviço do arsenal, fabricando uma flauta de ébano, ricamente guarnecida de prata lavrada, que tinham destinado offerecer ao príncipe Augusto de Leuchtemberg, primeiro marido de D. Maria II, o qual era, como seu pae, o príncipe Eugênio Beauharnais, e sua avó, a rainha Hortencia, muito aftéiçoado á musica.
A morte prematura do sympathico e infeliz príncipe não permittiu que se realisasse a offerta, ficando a flauta construída em poder do arsenal, que ainda a guarda no seu museu. Essa flauta figurou nas exposições industriaes de 1838 e 1888.
- A flauta que Ernesto Haupt construiu por conta do Arsenal do Exercito para ser offerecida ao príncipe Augusto de Leuchtemberg e que se guardava no museu do mesmo Arsenal, foi vendida em 1902, em leilão, juntamente com outros objectos pertencentes ao referido museu. «Felizmente acha-se hoje melhor guardada e mais estimada, em poder do meu bom amigo Alfredo Keil.»
Exemplo de flauta construída por Ernesto Haupt
Eram excellentes os instrumentos fabricados pelo Haupt pae. Existem ainda muitos, e alguns d’elles têem a sua his toria: foi feita por elle a velha flauta de cinco chaves em que sempre tocou Antonio Croner durante a sua longa e activissima carreira artística, flauta que lhe foi dada pelo seu bondoso mestre, Botelho; do mesmo fabricante era a flauta de José Gazul, os clarinetes de Carlos Campos, asim como os diversos instrumentos de muitos artistas e amadores, uns já fallecidos outros ainda vivos. O sr. Augusto Haupt possue também com grande estimação a flauta que expressamente para elle foi feita por seu pae, em 1845.
Julgo interessante saber-se os preços que este notável fabricante levava por alguns dos seus artefactos, preços que os filhos conservaram até se extinguir a officina: uma flauta de buxo com uma só chave de latão, custava seis pintos (tanto me custou aquella em que comecei a aprender); uma flauta de buxo com cinco chaves de latão, custava moeda e meia; uma flauta de ébano com cinco chaves de prata, cinco moedas; uma boquilha de ébano, dois pintos; de marfim, meia moeda; um clarinete, cinco moedas.
Ernesto Frederico Haupt perdeu a vista quando tinha sessenta annos de edade; sobreviveu ainda dezenove annos a essa catastrophe, fallecendo em 20 de julho de 1871.
Tinha quatro filhos: José Frederico Haupt, nascido em 2 de janeiro de 1818; Ernesto Frederico Haupt Junior, nascido em 9 de dezembro de 1821; Filippe Frederico Haupt; Augusto Frederico Haupt, o unico actual sobrevivente.
Os dois irmãos, José e Ernesto, tomaram conta da officina quando o pae ficou impossibilitado de a dirigir; o mais novo, reconhecendo que o trabalho não podia chegar para todos tres, seguiu outro rumo, tornando-se musico distincto, e, graças a uma intelligencia illustrada, pôde obter um emprego na camara municipal dos Olivaes, onde se acreditou como funccionario serio e bemquisto. Filippe tomou também outra occupação.
A industria começou pouco depois a definhar: ensombraram-na os productos bonitos e baratos da fabricação parisiense. Os fabricantes nacionaes não se acharam com energia nem com meios para sustentar a lucta; conservaram os typos antigos, em vez de os alindar, e de os aperfeiçoar no que realmente carecesse de aperfeiçoamento; não poderam ou não quizeram baixar os preços; não procuraram, emfim, fazer frente aos seus competidores, empregando armas eguaes. Enervou-os a demasiada confiança no credito adquirido. O resultado foi o seu completo aniquilamento.
A officina da rua de S. Paulo fora transportada em 1838 para a rua nova da Palma n.° 20, onde esteve até 1840; nesse anno, mudou-se para a rua Augusta n. os 51e 52 , conservando-se ahi por bastantes annos em estado brilhante. Soou, porém, a hora da decadência. As vendas e encommendas foram diminuindo progressivamente, até quasi se extinguirem; chegando o desfalque nas receitas a ponto de não darem para custear as despezas do estabelecimento, Ernesto Haupt Junior foi, em 1869, installar-se numa casa de renda barata, na calçada do Garcia. Nem ahi mesmo pôde, porém, sustentar-se. Ao cabo de poucos annos, viu-se constrangido a largar para sempre as gloriosas ferramentas que tanto brilho haviam adquirido nas mãos de seu pae e de seus avós. A nostalgia do trabalho attribulando-lhe horrivelmente a existência, veiu a dor moral a originar padecimentos physicos, de que muito soffreu. Valeu-lhe n’esses transes angustiosos o carinho fraterno; nem por um só momento sentiu afrouxarem-se os laços de amisade com que viveram sempre ligados todos os membros d’essa honrada familia.
Ernesto Frederico Haupt Junior, depois de prolongada e atroz doença, falleceu em 8 de dezembro de 1891.
A historia d’esta familia é interessante a muitos respeitos. A sua florescência faz parte da historia geral das artes e industrias no nosso paiz, desde a epocha em que receberam o impulso energico dado pela mão vigorosa do marquez de Pombal; a sua decadência deve também constituir objecto de util lição, para ser aproveitada por todos os que se interessam no renascimento da Patria.»
A marca que Frederico Haupt colocava nos instrumentos por si fabricados era somente: «F. Haupt - Lisboa.» Seu filho é que depois adoptou o emblema das duas cabeças.
Acerca do outro conhecido fabricante de flautas Manuel Antonio da Silva (?-1880), estabelecido em Lisboa, em 1807 e como referi no início, recorrendo-me ao "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes" (Vol II), da autoria do musicólogo, pedagogo, flautista e compositor Ernesto Vieira (1848-1915) e publicado pela Casa Lambertini ...
Manuel António da Silva figurou brilhantemente nas primeiras exposições industriaes que se realisaram em Lisboa desde 1822, graças á iniciativa da «Sociedade Promotora da Industria Nacional». "O relatório da exposição de 1838, que foi a segunda realisada, diz a seu respeito o seguinte:
"Promptifica qualquer encomrnenda da nova liga intitulada Prata d'Alemanha que tem a propriedade de se conservar branca sem mariar, a qual o <lito Fabricante tem a gloria de ter sido o unico que a tem posto em uso em Portugal desde 1839; e, julgando poder ser util aos mais Artistas, a faz a 1440 réis o arratel; podando asseverar (o que se pode verificar pela comparação) que tem aperfeiçoado a composição d'este metal, a ponto, que excede em brilho e brancura ao que vem d' Alemanha, Inglaterrra e França."
Uma flauta de ébano com cinco chaves e virolas de prata de lei custava 28:800 réis, e se as virolas eram lavradas custava mais 2:400 réis. A flauta mais cara mencionada na referida tabella custava 65:ooo réis; tinha quatorze chaves de prata.
Um clarinette de ébano com treze chaves de metal branco custava 43:200 réis; hoje custa 12:000 a 17:000 réis, fabricação franceza, ébano falso. Um fagotte de quinze chaves custava 72:000 réis.
Mas por essa época já a maior parte dos instrumentos que vendia eram estrangeiros e só fabricava quando especialmente lh'o encommendavam. O negocio também não prosperou, porque havia concorrentes mais hábeis ou mais felizes. Cerca de 1878, Silva pae, já em edade muito avançada, abandonou completamente a casa ao filho, e pouco depois falleceu.
Bibliografia:
Alguns documentos in: Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Música, por Alexandre Alberto da Silva Andrade: "A Presença da Flauta Traversa em Portugal de 1750 a 1850" - Universidade de Aveiro (2005).
fotos in: Hemeroteca Digital de Lisboa, Biblioteca Nacional Digital
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