Restos de Colecção: outubro 2024

29 de outubro de 2024

J.B. Waltmann, Weltin e Marchal - Músicos e comerciantes

No século XVIII a construção de mecanismos dos instrumentos de música, e dos mesmos, encontrava-se localizado nos armazéns de Paris e Londres. A partir destes epicentros eram exportados para toda a Europa, ao qual Portugal não ficou alheio e tornou-se em mais um ponto de recepção através dos armazéns dirigidos por músicos estrangeiros aqui radicados. Foi por influência de músicos como João Baptista Waltmann ou João Baptista Weltin, ambos instrumentistas na Real Câmara, que se inaugurou a comercialização especializada de instrumentos e artigos de música importados, a par da edição musical que conheceu, também ela, um processo de expansão no mesmo período igualmente por influência estrangeira. Recordo que actividade comercial ligada à venda de música (partituras) aparece registada no século XVIII, nomeadamente com Francisco Domingos Milcent em 1787.

Pedro Marchal e João Weltin nos "Avisos" da "Gazeta de Lisboa" de 12 de Novembro de 1791

Já em 1645 ...

"Comedia Moral, e Jocoza" composta por Pero Salgado em 1645, para o "Theatro do Mundo"

Na edição deste artigo acerca destas três importantes músicos, comerciantes e personalidades no meio musical do final do século XVIII e e início do século XIX em Lisboa, inicio cada capítulo referente a um músico com uma pequena resenha biográfica, que para tal me socorri, mais uma vez, da belíssima obra "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes". Esta obra é da autoria do musicólogo, pedagogo, flautista e compositor Ernesto Vieira (1848-1915) e foi editada, em 1900, pela conceituada e famosa Casa Lambertini, propriedade do grande pianista, afinador e fabricante de pianos, Luiz Joaquim Lambertini (1862-1920).

 João Baptista Waltmann

«Musico allemão que se estabeleceu em Lisboa no fim do seculo XVIII. Tocava trompa e pertencia á orchestra da Real Camara. Em 1791 fazia parte da orchestra do theatro da Rua dos Condes. No segundo semestre de 1792 estabeleceu un1 armazem de musica, que en1 6 de outubro d'esse anno annunciou na Gazeta de Lisboa pela seguinte forma:
"Mr. Waltmann, Musico de Camara de S. M, faz saber ao Publico que elle tem hum armazem de musica vocal e instrumental dos melhores authores modernos para toda a qualidade de instrumentos. Mora na travessa que vai do chafariz do Loreto para a Portaria da Trindade, no terceiro andar das casas de João Fernandes."
Em 1794 ampliou o negocio, mudando-se para a rua de S. Paulo, numero 18, 2° andar. Algum tempo depois encetou a publicação de um jornal de modinhas, imitação de outra empresa realisada antes com bom exito por Marchal e Milcent. O primeiro numero do novo jornal publicado por Waltmann sahiu no 1º de janeiro de 1801 com este titulo: "Jornal de Modinhas Novas Dedicadas ás Senhoras. Lx.ª em Casa de J. B. Waltmann na rua direita de S. Paulo defronte da fabrica dos Vidros ao pé do Arco do Marquez." Em formato oblongo. O trabalho de gravura é assignado por, "Vianna", tendo no frontispicio uma estampa copiada do Methodo de Piano de Pleyel e Dussek.
O Jornal de modinhas durou apenas um anno como publicação regular, mas Waltmann continuou a fazer imprimir  
avulsamente muitas modinhas; em agosto de 1824 ainda annunciava "as bellas modinhas de Joaquim Manoel por Neukom".
Em janeiro de 1802 começou a publicar um "Novo Jornal de Arias Italianas", que tambem teve curta vida.
Foi Waltmann quem primeiro vendeu metronomos em, Lisboa, annunciando essa novidade na Gazeta de 6 de dezembro de  1824, por esta forma:
"No armazem na rua direita de S. Paulo nº 18 defronte da fabrica dos vidros se achão á venda Metronomos ou instrumentos que regem da, maneira a mais positiva os andamentos da musica; bem como servem para regular com exacção a instrucção das marchas nos Corpos de infanteria: com elles se distribuirá um folheto explicativo."
Em julho de 1825 era já fallecido, pois que os annuncios, d'ahi por diante são feitos em nome de "Viuva Waltmann e filhos". O estabelecimento porém pouco mais durou.» (*)


5 de Novembro de 1798

João Baptista Waltmann foi o primeiro vendedor especializado de instrumentos, com uma oferta consideravelmente variada de artigos, regularmente anunciada na "Gazeta de Lisboa". Trompista de origem alemã, com registo de entrada para a Irmandade de Santa Cecília em Maio de 1791, Waltmann foi um músico particularmente activo na sua actividade comercial, mas também enquanto músico.

A partir de 1798 a colocação de anúncios começou a intensificar-se numa lógica de competição clara, a partir da implementação no mercado do seu concorrente mais directo, João Baptista Weltin. Uma semana depois da colocação do aviso de João Baptista Weltin anunciando para venda um «sortimento de instrumentos de vento de todas as qualidades; e que tambem vende instrumentos Mathematicos e Nauticos» (GL 44: 1799/10/29). Os anúncios de ambos os armazéns passam a destacar agora a variedade e quantidade de instrumentos disponíveis, fornecendo cada vez mais detalhes, numa intensificação das estratégias de marketing, para atrair o público interessado. A partir de 1800 Waltmann expande a sua actividade à edição musical, a qual abandonará em 1803 e só voltará a ser relançada pela firma “Viúva Waltmann e filhos”, no ano após a sua morte em 1824. 


3 de Maio de 1800

João Baptista Waltmann, a exemplo dos seu colega de profissão e concorrente comercial João Baptista Weltin (que falarei de seguida) anunciava, pontualmente, a venda no seu armazém de outros produtos, importados ou não, como era o caso de «hum sortimento de Cartas Geograficas do Reino de Portugal, divididas em oito Mapas», «excellente jaleia de França», «arêa luminosa para escrita da mais fina que tem apparecido»  ou xaropes. Tratando-se sobretudo de produtos de luxo que apontavam para um público aberto ao consumo sofisticado e à aquisição das novidades em voga na Europa, e que não por acaso aparecem num jornal ("Correio Mercantil") mais directamente associado a um público ligado à actividade comercial.

João Baptista Weltin

«Outro musico allemão, como o procedente, que se estabeleceu em Lisboa pela mesma época e fundou tambem um armazem de rnusicas e instrumentos.
Era collega de Waltmann, em 1791, na orchestra do theatro da Rua dos Condes, e na da Real Camara onde tocava fagotte.
Parece que era tambem habil no oboé e na flauta, pois que annunciou um concerto em seu beneficio no referido theatro,
dizendo que executaria no "fagotte, boé e flauta differentes tocatas."
Em 1795 tinha um armazem de musicas e instrumentos defronte da egreja dos Martyres nº 21 o qual se conservou até pouco depois de 1823.»
(*)

João Baptista Weltin, como vimos, além de ter desenvolvido uma importante actividade como músico, a expansão da sua actividade à comercialização de música (partituras) e instrumentos importados teve início no ano de 1798, ano em que ...



20 de Janeiro de 1798


1 de Novembro de 1799


18 de Dezembro de 1810


16 de Novembro de 1814


20 de Julho de 1815

A sua actividade comercial abarcou também a distribuição de música impressa importada e a sua, aparentemente limitada, actividade como editor está documentada pelo anúncio à subscrição de dois periódicos de música. Logo no ano seguinte de início de actividade, em Outubro de 1799, Weltin abandona a razão social anunciada de "Real Fabrica de Musica", talvez por se confundir com a de Francisco Domingos Milcent - "Real Fabrica e Impressão de Musica" com alvará obtido em 1788 e localizada «ao largo de Jezus». A partir de então anuncia-se como «Musico da Camara de S. A. R., morador na rua dos Martyres, na esquina que vai dar ao Real Theatro de S. Carlos» in: "Gazeta de Lisboa" de 29 de Outubro de 1799. 

Em 1816 faz seu sócio seu irmão Luis Gonzaga Weltin, do qual não há registo de actividade como músico nem aparecendo inscrito na "Irmandade de Santa Cecília". Constituem então a firma "João Baptista, e Luiz Weltin com armazem de musica defronte da igreja dos Martyres, 21", onde se manteriam até 1824.


1 de Fevereiro de 1819

24 de Abril de 1820

Em 1816 faz seu sócio seu irmão Luis Gonzaga Weltin, do qual não há registo de actividade como músico nem aparecendo inscrito na "Irmandade de Santa Cecília". Constituem então a firma "João Baptista, e Luiz Weltin com armazem de musica defronte da igreja dos Martyres, 21", onde se manteriam até 1824.


1 de Fevereiro de 1819

24 de Abril de 1820

Pedro Anselmo Marchal

«Cravista francez que se estabeleceu por alguns annos em Lisboa, onde foi tambem gravador e editor de musica.
Apresentou-se aqui com a mulher, que era harpista, pelos fins de 1789, dando um concerto na "Assembléa das nações estrangeiras" a 12 de dezembro do mencionado anno. Em 31 de maio do anno seguinte annuncio: um ultimo concerto na mesma assembléa, dizendo assim o respectivo annuncio publicado na "Gazeta de Lisboa" :
"Segunda feira 31 do corrente, nas casas da Assembléa das Nações estrangeiras, darão Mr. e Madame Marechal o seu ultimo concerto de cravo e harpa, em beneficio dos mesmos. Tocarão duetos, modas com variações, e varias tocatas da sua composição; e além disso cantarão os cantores da Camara de S. M. Principiará ás horas costumadas."
Faziam valer os seus merecimentos estes concertistas francezes, pois cada bilhete de entrada custava 1:600 réis, quantia que hoje equivale a mais do dobro.
Em 6 de junho de 1791 deram outro concerto no theatro da Rua dos Condes. Seguidamente, Pedro Marchal estabeleceu um armazem de musicas na rua das Parreiras, defronte da egreja de Jesus, annunciando-o pela primeira vez na "Gazeta" em 16 de setembro d'aquelle anno.
Logo no anno immediato se associou com o gravador, tambem francez, Francisco Milcent, tomando então o estabelecimento o titulo de "Real Fabrica e Impressão de Musica". O annuncio que lhe diz respeito, sahiu em 17 de julho de 1792. E o primeiro emprehendimento dos dois socios foi a publicação de um "Jornal de Modinhas", collecção muito curiosa que Milcent continuou depois de se separar de Marchal. Esta separação teve logar em junho de 1795, indo Marchal estabelecer-se no Chiado e Milcent na rua de S. Paulo defronte da,casa da Moeda.
Marchal deixou ao seu consocio a especialidade das modinhas, dedicando-se a gravar as proprias composições e arranjos; entre as primeiras figura um duetto concertante para cravo e yiolino, uma collecção de vinte e quatro "Preludos ou Caprichos" para cravo, seis "Rondós" para cravo e flauta, e urnas variacões sobre o thema "As Azeitonas novas". Este thema era um dos pregões que as antigas vendeiras de Lisboa cantavam com muito notavel melodia. Além d' estas e outras composições originaes gravou tambem diversos arranjos de obras de Pleyel e outros auctores. Tudo isto representa, corno bem se póde suppor, o trabalho de um compositor medíocre que explora o gosto do vulgo.
Entretanto Pedro Marchal e sua mulher davam todos os annos um concerto na Assembléa dos estrangeiros, onde eram muito applaudidos. Em novembro de 1795 annunciou um concerto de despedida dizendo que partiam para Madrid ; mas ainda depois d'isso estavam em Lisboa, pois que elle em março de 1796 annuncia novas composições á venda no seu  estabelecimento. D'esta data em diante é que não encontro mais noticias a seu respeito.» (*)


3 de Junho de 1791


16 de Setembro de 1791

O primeiro número do "Jornal de Modinhas" foi publicado em 1 de Julho de 1792.


Anno I nº 1 do "Jornal de Modinhas" (1795-1796) de P.A. Marchal e Francisco Milcent


"Moda do Zabumba" de 1792


1796

As edições de Pedro Anselmo Marchal foram apresentadas em português, italiano (língua franca da cultura musical) ou francês (sua língua pátria), como esta: «Sonate Favorite arrangée pour le clavecin ou Piano Forte, avec accompagnement de violon, par P.A. Marchal, Oeuvre 12, Prix 530. Lisbonne, en Caza de P.A. Marchal. Editeur & Marchand de Musique privilegié de S. M.»

Além das suas próprias produções - «Avisa de que imprime um jornal de 24 preludios ou caprichos para cravo de forças graduaes, todos da sua composição» in: "Gazeta de Lisboa" de 20 de Novembro de 1795 - o músico procurou oferecer serviços mais diversificados, gravando e estampando mas, aparentemente, se considerarmos que em breve passaria a Espanha, sem grande sucesso comercial:

28 de Março de 1794

24 de Outubro de 1795

A fim de abrir a sua casa comercial a "Junta do Commercio", criada pelo Marquez de Pombal em 1755, e que mudaria de denominação, em 1788 para "Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação destes Reinos", emitiria o seguinte parecer (excerto):

«Pretendem Pedro Anselmo Marchal Professor de Muzica e sua Mulher Mara Thereza por se terem aplicado a abrirem Chapas para impremir muzica, que V. Magestade lhe conceda a necessaria licença para o estabelecerem huma Fabrica de impreção de muzica, com a clauzula de que nehuma Pessoa possa contrafazer ou mandar impremir as obras, que da dita sua Fabrica sahirem. (...)» 

Já em 1842 uma notícia ...


(*) -  in:  "Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes" de Ernesto Vieira (1900)

Bibliografia:

- "Alguns gravadores activos na edição de música (1765-1830)", de Agostinho Araújo
- Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais (Musicologia Histórica) - "O Violoncelo na Música Sacraem Portugal entre 1750 e 1834" de Diana Gomes Vinagre - Fevereiro de 201 - NOVAFCSH

fotos in: Hemeroteca Digital de LisboaBiblioteca Nacional Digital

26 de outubro de 2024

Clubs e Casinos na Foz do Douro

Há registo de pelo menos cinco clubs e casinos, na freguesia de S. João da Foz do Douro, Porto, antes do final do século XIX, embora de naturezas muito diferentes: O "Club Rigollot", a "Assembléa do Allen", o "Casino de Cadouços", o "Casino da Foz" e o "Restaurant Casino Internacional".


Praia do Molhe e esplanadas na Foz do Douro

Alberto Pimentel no seu livro "O Porto ha trinta anos" publicado em 1893 lembrava:

«Durante a estaçao balnear nao havia bailes, nem soirées, nem pic-nics, qualquer d'estas manifestações da vida alegre das praias.
As unicas distracçoes que a Foz offerecia n'esse tempo eram uma casa de batota no Passeio Alegre e um bilhar nos baixos do Hotel da BoaVista.
De manha passavam-se duas horas na praia dos banhos, onde os banheiros hasteavam, para delimitar os arruamentos das barracas, bandeiras em que estavam inscriptos os seus nomes: Maria da Luz, Paulino, Leão, etc.
As familias que tinham alugado casa na Foz assistiam ate horas de almoco ao espectaculo que a praia de banhos offerecia todas as manhas, e que constituia o unico divertimento publico.»

Nota: Acerca do "Hotel da Boa-Vista", da Foz consultar neste blog, o seguinte link: "Hotel da Boa-Vista".

"Hotel da Boa-Vista" em c.1900

O club mais antigo e, provavelmente, o mais lendário, chamava-se “Club Rigollot” e tinha nascido de uma tertúlia de intelectuais que, desde os anos de 1840, se reuniam na “Pharmacia Amorim” situada na Esplanada do Castelo. Quanto a este club recordemos uma passagem do livro "Recordando o Velho Porto", do brigadeiro Nunes da Ponte (Porto, 1963):

«No início do séc. XX, na Foz do Douro, um grupo de amigos tinha por hábito juntar-se à porta da Farmácia Amorim, situada na esplanada do Castelo, frente ao Castelo da Foz, todos os dias ao fim da tarde. 
Era proprietário da "Farmácia Amorim" de Francisco José de Amorim, que a dirigia, auxiliado pelo técnico ajudante de apelido Pereira. Destas reuniões nasceu uma agremiação com o nome de Clube Rigollot. De entre as várias personalidades que compunham o grupo, destacou-se o barão de Paçô Vieira, de nome José Joaquim de Sousa de Barros Coelho Vieira, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, presidente do Tribunal da Relação do Porto, fidalgo cavaleiro da Casa real e comendador das ordens de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, que terá sido elevado ao "alto" cargo de presidente da direcção do Rigollot por aclamação. Todas as tardes ali se juntava, junto à farmácia, o grupo de associados em vivos e acesos colóquios que por vezes se prolongavam pela noite dentro, nos quais não entrava política partidária mas se discutiam com calor e entusiasmo assuntos de vária ordem. O nome do clube foi adoptado para homenagem à memória de um benemérito de nome João Paulo Rigollot. Por esta sociedade intelectual, que se tornou famosa por toda a cidade, passaram vários vultos da política, das letras, das ciências, antigos ministros, governadores civis, professores, juízes, banqueiros, etc., que no mais ameno convívio, em conversa tolerante e variada, agradavelmente passavam as tardes. Um dos frequentadores do clube e seu associado foi Francisco Ramalho Ortigão, sobrinho do escritor com o mesmo apelido, homem muito activo e empreendedor que, diga-se a título de curiosidade, chegou a montar nos jardins da sua residência, na rua Alto de Vila, uma fábrica de tapetes. Não terá durado muitos anos esta agremiação. Em Dezembro de 1952, o brigadeiro Nunes da Ponte escreveu na revista O Tripeiro, V série, que nenhum dos sócios do clube Rigollot pertencia "ao número dos vivos.»

O segundo club, foi a "Assembléa" ou "Assembléa" do Allen - como se lhe referia Ramalho Ortigão - e situava-se na Rua dos Banhos Quentes, actual Rua Coronel Raul Peres. 

«Foi n'essa Assembléa que nasceu a primeira roleta da Foz. Ha mais de vinte annos, a rolêta era uma innovação recente, que produzia sensação. Alguns pais de familia, que nunca jámais jogaram, iam vêr a rolêta, por simples curiosidade, como se póde ir vêr um monstro, uma féra. Os viciosos tomaram-lhe gosto, e, dentro de pouco tempo, a rolêta popularisou-se, a ponto de começarem a funccionar, além da rolêta aristocratica da Assembléa, varias rolêtas pataqueiras e pelintras.
Os puritanos, os caturras da jogatina repeliram a rolêta, e continuaram a frequentar a batota do high-life no Passeio Alegre; os encanzinados no vicio do jogo, ultra-viciosos, frequentavam a rolêta e a batota. - accumulavam.» in: "Porto há trinta anos" de Alberto Pimentel (1893).


O "High-Life" è esquerda na foto (com arvoredo)

Pelo decreto de 15 de Agosto de 1870, o barão da Trovisqueira consegue autorização para «estabelecer à sua custa, na estrada pública entre o Porto e a povoação da Foz, podendo prolongar-se até Matosinhos, um caminho de ferro para transporte de passageiros e mercadorias, servido por cavalos». A 15 de Maio de 1872 é criada a "Companhia Carril Americano do Porto à Foz", proporcionando transporte cómodo, pois circulava sobre carris, e mais rápido, que ligava o centro da cidade à Foz, pela marginal. Em 1874, é inaugurada a linha americana entre a Praça Carlos Alberto e Cadouços (Foz), pela Boavista. No fim da década, a Câmara  autorizou as duas companhias a adoptarem a tracção a vapor. Com a entrada em funcionamento da ligação por comboio a vapor entre a Boavista e Matosinhos, tudo ficou mais facilitado. A  "máquina" fazia uma paragem prolongada em Cadouços, na Foz do Douro, para abastecimento de água, aí existindo um restaurante de apoio.


Estação ainda de "Americanos" em Cadouços

Mas, mais uma vez, segundo Alberto Pimentel no seu livro "O Porto ha trinta anos" ...

«Durante algum tempo uma companhia lembrou-se de organisar um serviço de navegação fluvial entre o Porto e a Foz. Havia um vaporzinho que fazia carreiras entre a cidade e a Cantareira, mas a empresa nao deu bom resultado, tal era o apêgo ao burro, no Porto d'aquelle tempo, como meio de transporte.
O burro venceu o vapor, não certamente pela velocidade, mas pela força do costume e da tradição.»

Por outro lado Luís António de Oliveira Ramos no seu livro "História do Porto" (2000) escrevia ...

«Os novos transportes aproximavam Leça, Matosinhos e a Foz do Porto…A Foz do Douro torna-se então « um Porto em miniatura», de barco, de charrete, de «americano», desembarcam banhistas durante a época do verão, espalhando-se pelas praias que crescem ao lado da privativa «Praia dos Ingleses», junto à Rua da Senhora da Luz. A Foz concorre então com as praias fluviais do Rio Leça e as praias de mar de Matosinhos, tornando-se a primeira estância de mar da zona do Porto. Tem casino, vários cafés, cinco colégios, vários hotéis… e um clube elitista, que cede dos seus pergaminhos e, durante o Verão, aceita sócios « de estação». Mas do « americano» desembarcava tudo, pessoas de todas as categorias sociais, cestos de pão e fruta, canastras, caixotes, trouxas de roupa branca das lavadeiras… a praia do Caneiro, mesmo encostada à Praia dos Ingleses, torna-se uma praia popular…»

Com a entrada em funcionamento da ligação por comboio a vapor entre a Boavista e Matosinhos, tudo ficou mais facilitado. A "máquina" (alcunha por que era chamada esta composição) fazia uma paragem prolongada em Cadouços, na Foz do Douro, para abastecimento de água, aí existindo um restaurante de apoio, o "Restaurante de Cadouços". Anteriormente à estação da "máquina", durante a época balnear, neste local foi montado um circo e, por um breve período, também uma praça de touros. A "máquina" funcionou entre 1875 e 1914.


A "máquina" a chegar à estação de Cadouços ...


... e a circular no Passeio Alegre

Mas ... «faltava ainda o club familiar», como Ramalho Ortigão reclamava, que as senhoras pudessem frequentar. E o primeiro foi o "Club de Cadouços", inaugurado em 1881 no edifício da estação do comboio a vapor, com orquestra privada e acesso restrito, que incluía o popular "Restaurante de Cadouços", que servia a estação. Aqui durante a tarde convivia-se jogando cartas, bilhar e dominó. Era um lugar de leitura e conversa, onde se realizavam concertos de música de câmara, árias de ópera, teatro, e reuniões dançantes. A partir de 1884 o clube formou uma orquestra amadora composta por sócios. Pagava-se uma jóia de 1$000 reis e 6$000 reis por ano.


12 de Agosto de 1909 

Relativamente ao anúncio anterior, no dia seguinte, 13 de Setembro, o mesmo jornal "A Voz Publica", comentava a soirée da noite anterior:

«Nolte brilhantissima a de hontem no Casino de Cadouços. Destacaram-se toilletes claras, como azas de pombas, rostos gentis e frescos, que mamas carinhosas contemplaram embebecidas!
Algumas cabeças meas-emulduradas por caprichosos cabelos, outras parcialmente ocultas por chapeus signés, que flores artificiaes ajardinaram, eram o enlevo dos janotas, que, de lindas flôres ao peito, aureferlam, sofregos, os sorrisos juvenis que em frescas bocas brincavam.
Namoros, flirts, emfim, o costume, que nós todos temos, quiça amargamente experimentado. Um jardim humano, com algumas deliciosas flôres que o belo matrimonio ainda não desbetou, alegre e vivo, como que agitado pela brisa da juventade, era a impressao que hontem deixava o salao nobre do Casino, a quem de relance o observasse.
Falamos do salão; falemos agora do sextetto.
E' um dos mais notaveis que tem vindo a Foz, n'estes ultimos annos. De toda aquella audição musical resultou um verdadeiro exito, um enthusiasmo na èlite que religiosamente ouviu com attenção os famosos trechos do seleto programa, em que Forssini, Quilez, Jose Bonet, Manuel de Figueiredo, José Pastrana e Manuel de Paiva, se salientaram primorosamente, como toda a gente esperava dos recursos e meritos de qualquer d'esses professores, cuja competência foi sobejamente apreciada pelo público, que no fim de cada seleção aplaudia-os gostosamente, por largo tempo. Os artistas, quer na interpretação dos trechos, quer na execução, corresponderam a todas as exigencias que sempre oferece um publico selecto e avido de optima musica.
Ha finalmenta, na Foz, onde passar noites delielosas, iluminadas pela luz da bela Arte da musica e no meio de uma fina sociedade.
Alnda bem.»


Postal publicitário (frente e verso)



Na revista "Arte e Musica de 30 de Junho de 1910


Cartão de admissão

“Casino da Foz”, foi registado na "Repartição de Propriedade Industrial" pelo negociante José Lopes Carreira Munhós em 15 de Fevereiro de 1906. Estava aberto todo o ano e era «unicamente frequentado pelos seus associados, proporcionando, durante os três meses de época balnear, várias diversões, sendo as mais distintas as suas soirées dançantes e os concertos de amadores. O club recebe nas suas salas a melhor sociedade do Porto e de fora, havendo uma inscrição especial durante o tempo de banhos para se poder frequentar este grémio como assinante de estação». Em espaços contíguos, mas pertencendo à mesma gerência, existia um café e um casino. Em 12 de Julho de 1911 seria totalmente consumido por um incêndio.

Edifício do "Café da Foz" (à esquerda o gradeamento do "Casino da Foz")


Registo do "Casino da Foz" 


9 de Agosto de 1900


Fichas de jogo do "Club da Foz"

Depois de reconstruído passou a designar-se "Restaurant Casino Internacional", - ou high-life -, e era propriedade da firma "Empresa do Casino Internacional da Foz Limitada", no mesmo lugar do "Casino da Foz" instalado num prédio com frente para a rua do Passeio Alegre, fazendo esquina com a rua das Matas. 


"Restaurant Casino Internacional" - primeiros 2 edifícios à esquerda no postal


8 de Maio de 1919


Fichas de jogo do "Casino Internacional"

15 de Maio de 1919

Em 1931 as suas instalações dariam lugar ao "Colégio Brotero", que por ali ficou até 1950.

Bibliografia:  

- Dissertação de Douturamento em História de Arte Contemporânea "A Vilegiatura Balnear Marítima em Portugal 1870-1970 - Sociedade, Arquitectura e Urbanismo - por Maria da Graça Fernandes Pestana dos Santos Gonzalez Briz -  UNL (2003).
- Blog:  "Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos Nossos Dias" 

23 de outubro de 2024

Grande Bazar Suisso

O "Grande Bazar Suisso" de "C. Barella & Irmão", abriu pela primeira vez na Rua do Chiado (Rua Garrett) em 1866, e era uma das lojas de espelhos, molduras e bijuterias das mais elegantes e mais ricas de Lisboa. Pertencia aos irmãos Celestino e Albino Barella, dois irmãos suíços que já viviam há muitos anos em Lisboa, muito simpáticos, muito trabalhadores e muito empreendedores.

"Grande Bazar Suisso" à direita (na foto) da "Pastelaria Marques"


Edifício do "Grande Bazar Suisso" na área delimitada (2 primeiras portas de quem sobe)

Celestino Barella tinha iniciado a sua actividade comercial, em Janeiro de 1866 numa pequena e modestíssima lojinha - "Officina de Dourador e Deposito d'Estampas de Celestino Barella" - na rua Nova do Almada, 39-41, e mais tarde, em 1868 já no nos 4 e 6 da Rua Nova do Carmo,  chegou com seu irmão Albino Barella, à força de trabalho e de perseverança, à luxuosa loja do Chiado, que faria boa figura ao pé das mais elegantes e bem fornecidos de qualquer grande cidade da Europa. 



Loja de Celestino Barella na Rua Nova do Carmo (dentro da elipse desenhada)

Os principais produtos e serviços comercializados pelo "Grande Bazar Suisso" eram os seguintes: Molduras, gravuras, fotografias, desenhos, oleografias, imagens religiosas, fornecimento para douradores e belas artes, vidros polidos para montras, aço em vidro para espelhos, álbuns, passepartouts, estereoscópios, visitas, galerias e baguetes para tapeçaria.

Quanto ao percurso dos dois irmãos Celestino e Albino Barella, o jornal "Diário Illustrado", em 19 de Novembro de 1889, referia-se-lhes do seguinte modo:

«Celestino Barella e seu irmão Albino Barella, são naturaes da Suissa, do cantão Ricino. Vieram para Portugal ha bastantes annos, estabelecendo-se pela primeira vez com loja de estampas e molduras na rua do Poco dos Negros. Mais tarde passavam para a rua do Loreto, onde hoje se acha a padaria Benard.
Foram sempre homens energicos, incansaveis no seu trabalho de douradores. A sorte favoreceu-os por muito tempo, e mais tarde iamos encontral-os na rua Nova do Carmo, onde ainda hoje existe a succursal do grande "Bazar Suisso" que foi pasto das chammas, e que abriu havera uns oito annos.
Foi esta a segunda vez que aquella familia soffreu com o incendio. Da primeira vez foi quando residiam na sobreloja, onde hoje mora o sr. Alfredo Keil, d'um predio que foi devorado por um fogo, e mais tarde reconstruido. Dois filhos de Celestino Barella falleceram em resultado de susto d'esse fogo.

 

0 sr. Celestino Barella, que deve ter uns cincoenta annos, é casado com a sr.ª D Rosa Barella, tendo d'este consorcio cinco filhos, dos quaes se conservam vivos tres. Foi depois do fogo da rua do Crucifixo que tomou a casa do Chiado onde estabeleceu o Bazar Suisso, e no qual deu sociedade a seu irmão.
0 sr. Albino Barella é solteiro e tem pouco mais de quarenta annos. Fazemos votos porque estes dois homens sympathicos e trabalhadores vençam a fatalidade que os prostrou enfermos, e que em breve os vejamos restituidos á sua actividade moral, por agora tão bruscamente interrompida.»  

No "Diário de Noticias"  de 23 de Dezembro de 1897 podia-se ler:

«Estamos na semana do Natal e já se nota por toda a parte um ar de festa nos templos da gastronomia e da elegancia; no vasto armazem de viveres do Martins, na sumptuosa ourivesaria Leitão, na rescendente e apetitosa loja do Ferrari, nos graciosos armazens de bijouterias do. Barella, do Benard e do Pexe. Em todas as ruas as vitrines apparecem engalanadas com quanto póde desafiar o apetite material ou a curiosidade do espirito. Brinquedos para creanças, joias . para mulheres, objectos delicados para os amadores da arte, tentações para todas as edades, iguarias para todos os paladares, deslumbramentos para todas as pupillas.»

Celestino Barella ainda manteve, até ao final do século XIX, uma papelaria nas suas primitivas instalações da Rua Nova do Carmo, nos 4 e 6.

Como foi referido anteriormente, em 14 de Novembro de 1889 deu-se uma explosão no "Grande Bazar Suisso", cujo excerto da reportagem do "Diário Illustrado" do dia seguinte, transcrevo:

« (…) No predio a que acima alludimos estava estabelecido o Bazar Suisso, que occupava os n.° 66 a 72, e era pertencente aos sr.s Barella & Irmão, uma conhecida casa, em frente dos Martyres, distincta por ser um dos mais bonitos estabelecimentos do Chiado. A porta d'escada de serventia do predio é o n.° 74. Os n.0s 76 e 78 eram os da luvaria Benard.
Aproximava se o anoitecer, e tinham-se accendido os candieiros do estabelecimento, faltando o da montra, onde ha dias os operarios da nova companhia tinham mettido encanamento. Quando o moço ia com a vela para accender o bico do candieiro deu-se uma medonha explosão de gaz extravasado. A violencia foi tal que as vidraças dos predios e estabelecimentos que mais proximos lhe ficavam de frente foram feitas em pedaços.
O fogo, arruinando todo o Bazar Suisso, do qual nada se salvou, passou rapido, como dissemos, ao 1.° andar. Estava ahi estabelecido o Turf-Club, que ha pouco se mudára da sua antiga casa fronteira á rua de S. Francisco.
O 2.° andar era habitado pelos proprietarios do Bazar Suisso, os srs Barellas, e as aguas furtadas tambem lhes pertenciam. O prejuizo em todos esses andares foi quasi completo, porque os salvados sao insignificantes.
Quando se deu a explosão achavam-se no estabelecimento os proprietarios, irmãos Barellas, o caixeiro Alexandre Leuzinger, Mannel Lourenco y Martinez, dourador da casa, a sr.ª D. Rosa Barella, e o moço de nome Lourenço. O dourador Martinez foi arremessado ao outro lado da rua, indo cair sobre o passeio, ficando gravemente ferido. O sr. Albino Barella ficou muito queimado e ferido na cabeça, e uma fractura na bacia. O sr. Celestino Barella, irmão d'aquelle, ficou muito contuso. A sr.a D. Rosa Barella ficou ferida no braço direito. O moço Lourenço ficou ferido na cabeça, rosto e mãos. O dourador foi conduzido ao hospital; não é grave o seu estado. O sr. Albino Barella também para ali foi conduzido e acha-se no quarto n.° 1, particular, de 1ª classe. O seu estado é gravissimo, cremos mesmo que desesperado. O sr. Celestino recebeu curativo na pharmacia Durão, que forneceu medicamentos a todos os feridos e onde se achavam prestando soccorros os srs. drs. Salvador, Brito, Azevedo, Joyce, Stromp, Rivotti e Fragoso Tavares. N'essa pharmacia foi tambem curada a sr.a D. Rosa Barella e o moço Lourenço.»


Na revista "Occidente" de 21 de Novembro de 1889


24 de Dezembro de 1889

Contudo, 3 dias depois a 17 de Novembro o mesmo jornal noticiava: 

«0 sr. D. Francisco de Almeida já recebeu da companhia Fidelidade 35:000$000 réis do seguro do predio incendiado; o Turf Club recebeu 6:000$000, e todos os outros segurados já liquidaram os seus seguros com a mesma companhia.
No commissariado da 2.ª divsão levanta-se um auto de investigação sobre as causas do sinistro.»

Do palácio onde havia vivido o Marquês de Nisa, e que então pertencia a D.  Francisco de Almeida, - que tinha albergado o "Grande Hotel de João da Matta" entre 1871e 1873 - restaram apenas as paredes exteriores, tendo desabado a abóbada existente entre a sobreloja e o primeiro andar. Aí, os irmãos Barella perderam sua magnifica casa onde tudo começou, mas também a sua habitação, no 2º piso, como aliás, tinham perdido, alguns anos antes, o espaço onde habitavam, na rua do Crucifixo, num outro incêndio que matou dois elementos da família. Com danos, mas recuperáveis, ficou a sede do jornal "O Dia", paredes meias com o palácio. Casos também da luvaria de Adolfo Malbomisson, os armazéns de modas de "Carvalho e Cª ", "Arsénio e C.ª ", a chapelaria de Augusto Ribeiro e o estabelecimento de máquinas e relógios de Carlos Silva, entre outros.

O "Grande Bazar Suisso", dos irmãos Barella, reabriria em 25 de abril de 1891 e manteve a sua atividade mais 20 anos, tendo encerrado, em definitivo, por altura da implantação da República, em 5 de Outubro de 1910. Entretanto, Celestino Barella tinha falecido em Novembro de 1894. 


23 de Abril de 1891


1898



19 de Dezembro de 1900

De referir, ainda, que Celestino e Albino Barella tinham outro irmão Carlos Prospero Barella, que era farmacêutico e que tinha a "Pharmacia Barella" na Rua do Loreto, 71.

No lugar do estabelecimento "C. Barella & Irmão" instalou-se, em Dezembro de 1910, a loja "Jardim de Lisboa" da firma "J. Peixinho, Lda." (que tinha começado na Rua do Carmo, 49), abrindo no início de 1911. Esta, quando se mudou para o nº 61, por volta de 1915, viria a dar lugar a outra loja de flores e plantas, a "Lopes, Limitada", a que se seguiu a "Marques & C.ª" - Alfaiates e Camiseiros, a "Saboia", etc.


"Jardim de Lisboa" da firma "J. Peixinho, Lda." em fotos de 8 de Julho de 1912


Flores e Plantas "Lopes, Limitada"